O cinema, como a arte de maneira geral, busca refletir o seu próprio tempo. Não é por acaso que a seleção de 17 filmes inéditos que integra a programação da 13ª edição do Festival Varilux de Cinema Francês tem certa gravidade. Boa parte deles está conectada direta ou indiretamente com a atualidade – como vem ocorrendo com a produção artística de todo o mundo.
O evento, que começa nesta semana em 50 cidades – em Belo Horizonte, as sessões, a partir desta quinta (23/6), serão nos cines UNA Belas Artes, Cineart Ponteio, Centro Cultural Unimed-BH Minas e Cinemark Pátio Savassi –, reúne longas apresentados (e alguns deles premiados) nos festivais de Cannes, Veneza e Berlim.
Vencedor do Leão de Ouro em Veneza, o drama “O acontecimento”, de Audrey Diwan, acompanha a trajetória solitária e opressiva de uma jovem que decide fazer um aborto na França dos anos 1960. Premiado no mesmo festival, “Contratempos”, de Eric Gravel, traz uma mulher em meio ao caos político-social de Paris que tenta se recolocar no mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que luta para criar sozinha os dois filhos.
A ascensão da extrema-direita na França é o tema de “O mundo de ontem”, de Diastème, enquanto a discussão sobre a utilização de pesticidas na agricultura coloca em choque lobistas e ambientalistas em “Golias”, de Frédéric Tellier.
“Um herói”, de Asghar Farhadi, vencedor do Grande Prêmio de Cannes, coloca seu protagonista em um dilema moral que revela os meandros da sociedade iraniana da atualidade. O filme tem sua própria polêmica, depois que uma ex-aluna de Farhadi o acusou de plágio. O diretor nega que tenha copiado o argumento do filme.
A seleção reúne grandes nomes do cinema francês: o cineasta François Ozon é o autor de “Peter von Kant”, nova leitura de um clássico de Fassbinder que traz Isabelle Adjani no elenco; Fanny Ardant protagoniza o drama amoroso “Os jovens amantes”; Daniel Auteuil divide a cena com Gilles Lellouche (este está em três longas da seleção) no kafkiano “O destino de Haffman”, ambientado na França ocupada.
APREENSÃO
Idealizador e curador do evento, Christian Boudier afirma que a realização do Varilux neste momento significa uma defesa do cinema independente. “Chegaremos a 90 cinemas de 50 cidades, é uma presença forte, mas estamos com muita apreensão em relação ao público. Os cinemas estão longe dos números anteriores (à pandemia), e a área vem sofrendo demais. Achamos fundamental que o cinema seja no cinema, tanto que não queremos misturar exibição no cinema e no streaming. Mas, por outro lado, não faremos uma recusa da realidade.”
Essa declaração do produtor francês radicado no Brasil diz respeito à explosão das plataformas. Pela primeira vez, o Festival Varilux vai envolver uma programação de séries. Foram selecionadas sete produções inéditas que estão sendo exibidas nesta semana, exclusivamente em salas do Rio e de São Paulo.
“Estamos trabalhando com o conceito do Séries Mania, em Lille, hoje o maior festival de séries do mundo, com a exibição dos dois primeiros episódios de cada título. A gente espera que isso desperte o desejo de ver mais. Também estamos reunindo muitos profissionais franceses e brasileiros”, diz Boudier.
Os espectadores de todo o Brasil não ficarão na mão, vale dizer. A partir de 14 de julho, feriado nacional francês em celebração à Queda da Bastilha (1789), evento central da Revolução Francesa, quatro séries começarão a ser exibidas no streaming, em parceria com a plataforma Looke.
Cada título será disponibilizado gratuitamente por um mês – os lançamentos serão quinzenais. A primeira atração será a temporada inicial de “Jogos de poder” – com seis episódios, a série garantiu um segundo ano para 2022. Aqui, é também a indústria de pesticidas em debate, colocada à prova por meio de personagens como um agricultor com leucemia, um parlamentar idealista e um lobista disposto a tudo.
13º FESTIVAL VARILUX DE CINEMA FRANCÊS
A partir desta quinta (23/6), em Belo Horizonte, com sessões no UNA Cine Belas Artes, Cineart Ponteio, Centro Cultural Unimed-BH Minas e Cinemark Pátio Savassi. Haverá exibições também em Juiz de Fora e Ouro Preto. Programação completa na
página do festival.
OULALÁ
Confira destaques da edição 2022 do festival
» “CONTRATEMPOS” (2022, 88min)
.De Eric Gravel, com Laure Calamy
Conhecida do público como a secretária Noémie da série cômica “Dix pour cent”, Laure Calamy interpreta um forte papel dramático que lhe garantiu o prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza (a mostra italiana também premiou Gravel como melhor diretor). Vivendo com os dois filhos em um distante subúrbio parisiense, Julie finalmente conseguiu a entrevista para uma empresa que vai recolocá-la no mercado. Mas uma greve dos transportes eclode, gerando o caos em Paris. Ela corre (muitas vezes literalmente) contra o tempo para salvar o emprego e a família. Com um agudo senso de urgência, o filme discute maternidade e questões sociais.
» “GOLIAS” (2022, 122min)
.De Frédéric Tellier, com Gilles Lellouche, Pierre Niney e Emmanuelle Bercot
Com boa bilheteria na França, o thriller enfoca a utilização de pesticidas na agricultura francesa por meio de três personagens: um solitário advogado especialista em direito ambiental, uma professora secundária que vira ativista por causa de um drama pessoal, e um jovem e brilhante lobista, que defende os interesses de um gigante agroquímico. Filme de tribunal misturado com drama pessoal, “Golias” é um “Erin Brokovich” atual, eletrizante e sem soluções fáceis.
» “O ACONTECIMENTO” (2021, 100min)
.De Audrey Diwan, com Anamaria Vartolomei, Kacey Mottet Klein e Luàna Bajrami
Exibido no Indie Festival do ano passado, o vencedor do Leão de Ouro de melhor filme no Festival de Veneza é ambientado na França, em 1963. Anne, uma estudante promissora, engravida. Ela decide abortar, disposta a fazer qualquer coisa para se livrar do bebê e ser dona de seu próprio corpo e de seu futuro – para tal, acaba desafiando a lei.
» “OS JOVENS AMANTES” (2022, 114min)
.De Carine Tardieu, com Fanny Ardant, Melvil Poupaud e Cécile de France
Shauna e Pierre se conhecem em meio a uma situação-limite. Quinze anos depois, se reencontram. Ela é uma viúva de 70 anos; ele, um casado pai de família de 45. Nada, mas absolutamente nada, parece capaz de separá-los, apesar de tudo, absolutamente tudo, que parece opor um ao outro. Um pequeno conto sobre amor, perda, envelhecimento, doença e perdão, o longa traz grandes interpretações não só do casal principal (Ardant e Poupaud), como de uma machucada Cécile de France.
» “PETER VON KANT” (2022, 86min)
.De François Ozon, com Denis Ménochet, Isabelle Adjani e Khalil Ben Gharbia
Um dos mais prolíficos cineastas franceses contemporâneos presta aqui sua homenagem ao enfant terrible do cinema alemão, Rainer Werner Fassbinder (1945-1982). O filme é livremente inspirado na peça e no longa "As lágrimas amargas de Petra von Kant", que Fassbinder lançou há meio século. Peter é um cineasta esnobe que vive com o assistente Karl, a quem gosta de humilhar. Só que quando sua antiga musa, a atriz Sidonie, o apresenta a Amir, ele se apaixona e promete fazer dele um grande ator.
» “UM HERÓI” (2021, 128min)
.De Asghar Farhadi, com Amir Jadidi e Mohsen Tanabandeh
Vencedor do Grande Prêmio no Festival de Cannes de 2021, o novo drama do cineasta iraniano foi apontado como seu melhor filme desde seu reconhecimento no mercado internacional com “A separação” (2011, Oscar de melhor filme estrangeiro). Rahim está na prisão devido a uma dívida que não conseguiu pagar. Durante uma licença de dois dias, ele tenta convencer seu credor a retirar a sua queixa em troca do pagamento de parte da quantia.