“O avesso do avesso do avesso do avesso”, verso de “Sampa” (Caetano Veloso, 1978), é levado ao pé da letra na exposição “Brasilidade pós-modernismo”, que será aberta nesta quarta (29/6), no Centro Cultural Banco do Brasil, em Belo Horizonte. Mas, aqui, não é a cidade de São Paulo o foco, e sim todo o país.
“Nos 100 anos do modernismo e 200 da Independência, estamos revendo preceitos e heranças. Olhar o avesso é buscar algo mais que não foi narrado anteriormente. Será que as verdades são essas que foram ditas até agora?”, questiona Tereza de Arruda, que assina a curadoria da exposição.
Para tal, foram reunidos trabalhos de 51 artistas brasileiros, boa parte deles atuantes no cenário da arte contemporânea. Algumas das obras foram produzidas exclusivamente para a exposição – outra parte saiu do acervo dos próprios artistas.
Seis núcleos temáticos – Liberdade, Futuro, Identidade, Natureza, Estética e Poesia, temas trabalhados na Semana de 1922 – reúnem pinturas, fotografias, desenhos, esculturas, instalações e novas mídias.
Já exibida nas unidades do CCBB em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, a mostra teve, até o momento, público de 70 mil pessoas. Encerra na capital mineira sua trajetória – a visitação vai até 19 de setembro.
PÁTIO
“Brasilidade” ocupa o terceiro andar, principal espaço expositivo da instituição. Apenas uma obra está no pátio, motivo de orgulho e emoção para o artista cearense Francisco de Almeida. Dezoito xilogravuras estão expostas em suspensão na área, formando como que um móbile de grandes proporções.“É a primeira vez que a obra do Francisco é apresentada desta forma. O trabalho dele é baseado na literatura de cordel e a nossa ideia era transformá-la em um grande varal. Os elementos vêm do sincretismo, religiosidade, das heranças familiares, e o trabalho faz a ligação da arte popular com a contemporânea”, comenta Tereza. A disposição com que as xilos são apresentadas permite que o público veja a frente e também o avesso de cada uma.
Francisco diz que tudo foi feito a partir da intuição. “Só quando vi a primeira montagem, em São Paulo, entendi o que tinha feito. Eu chorei, como há pouco também”, diz ele, que conferia a finalização da montagem. Nascido em Cretéus, no sertão cearense, e criado pela avó, ele utiliza em suas obras referências familiares: “Os bordados, as orações, a paixão pelo místico e pela religiosidade”.
Ainda que seu trabalho tenha se voltado para a xilogravura, Francisco afirma que hoje o que faz não é mais xilo. “Talvez uma técnica mista, porque tem pintura, gravação e um método criado por mim que não é convencional. A gravura tradicional é prensada. No meu caso, é manual, com uma colher de pau”, conta ele, que realiza suas obras em uma mesa de casa.
No hall do terceiro andar, a mostra é aberta com trabalhos do paraibano José Rufino. “Suas obras falam muito das relações burocráticas desde o período colonial”, observa Tereza – o avô paterno do artista foi senhor de engenho.
FICHÁRIO
Nas paredes, duas grandes telas criadas a partir de documentos originais, “uma herança da oligarquia”, trabalhadas sobre a maneira de Rorschach (técnica de avaliação psicológica pictórica, criada pelo psicanalista suíço Herrmann Rorschach). No centro, uma escultura formada por antigo fichário que está literalmente enraizado. “Até que ponto toda a burocracia do pós-colonial ainda está enraizada na nossa existência?”, discute a curadora.A primeira sala é a única a misturar artistas de diferentes segmentos temáticos. Já na abertura, nos deparamos com uma grande (e facilmente reconhecível) acrílica de Beatriz Milhazes, “Dancing” – há outras telas da artista carioca, de menor dimensão. Milhazes pertence ao segmento Estética, por sua obra trazer ritmo, cor e sonoridade que representam a brasilidade.
No mesmo ambiente estão trabalhos do eixo Identidade. Do paulista Alex Fleming há duas fotografias de pessoas que representam as diferentes etnias do país, imagens que integram espaços públicos de São Paulo (a Estação Sumaré do Metrô e a fachada da Biblioteca Mário de Andrade). Também paulistano, Flávio Cerqueira apresenta figuras em formato escultórico (uma em bronze e quatro em pintura eletrostática sobre bronze) sobre pessoas que passam despercebidas no cotidiano das grandes cidades.
“O grande desafio foi fazer uma mostra coerente com a ideia e trabalhar com várias gerações de artistas, divididos por diferentes segmentos”, diz Tereza. Há nomes incontestes da arte contemporânea, caso de Cildo Meireles, Nelson Leirner, Tunga e Adriana Varejão.
Cildo, por exemplo, pertence ao segmento Estética, que expõe alguns de seus trabalhos mais conhecidos, como “Inserções em circuitos ideológicos”. A série de 1970 consistia na reutilização de objetos que, modificados, eram relançados no mercado com outra ideologia. Desta série está um exemplar do “Projeto Coca-Cola”, em que o artista gravava nas garrafas de vidro retornáveis inscrições: “Yankees go home!” é uma delas, só vista quando a garrafa está cheia do refrigerante.
O núcleo Liberdade reúne obras que fazem menção à questão indígena, como um busto de madeira do mineiro Farnese de Andrade. “O título não oficial da obra é ‘O avô’, um oligarca que está postado confortavelmente”, comenta Tereza. Um olhar com mais atenção na parte de trás da peça traz uma imagem de um indígena, quase escondida.
Tal imagem está em frente à obra da maranhense Gê Viana, que reúne na série “Paridades” fotografias antigas de pessoas que compõem a identidade brasileira com imagens de pessoas atuais. Há ainda, no mesmo segmento, alguns trabalhos de Anna Bella Geiger. Obra do acervo da artista, “Brasil nativo-Brasil alienígena” reúne 18 cartões postais colocados lado a lado. Do lado direito está a artista com sua família; no esquerdo, imagens de indígenas. “Ou seja, a paridade que a Gê Viana faz agora, a Anna Bella já fazia nos anos 1970, propondo uma conversa horizontal”, acrescenta a curadora.
TAPETE
Esta conversa de que fala Tereza também acontece em outras obras da exposição. Artista cearense radicada em Berlim, Luzia Simons, que veio a BH para a abertura da mostra, criou para a exposição o tapete “Índias Ocidentais”, obra de 9 metros de extensão. Tal trabalho traz uma relação com o varal de xilos de Francisco de Almeida.“A partir da leitura do direito e do avesso, estou utilizando justamente o avesso do tapete”, explica ela, que nesta parte do tapete bordou, à mão, imagens com temas brasileiros, como plantas, frutas e indígenas. O bordado, em dourado, é muito sutil. O lado direito, por assim dizer, do tapete, é visto somente na parte de trás – foi tecido na Bélgica, a partir de tulipas que a artista havia escaneado.
O segmento Futuro destaca uma pintura de Oscar Niemeyer, uma das duas únicas que o arquiteto realizou. O óleo sobre tela foi produzido em 1964, em Paris, quando Niemeyer estava exilado e desiludido com o golpe militar. Há referências sobre Brasília, que representou o futuro do país, em serigrafias de Lúcio Costa e um filme em Super-8 do cineasta Jorge Bodanzky, recuperado recentemente pelo Instituto Moreira Salles.
A mostra termina com uma sala dedicada a Poesia. Traz desde trabalhos clássicos de Augusto de Campos e Julio Plaza até pinturas, a partir da escrita, de Arnaldo Antunes, seguindo com obras realizadas para a exposição, como peças do curitibano André Azevedo, que faz bordado a partir da máquina de escrever.
“BRASILIDADE PÓS-MODERNISMO”
Abertura nesta quarta (29/6), às 10h, no Centro Cultural Banco do Brasil, Praça da Liberdade, 450, Funcionários, (31) 3431-9400. Visitação diária (exceto terça-feira), das 10h às 22h. Até 19 de setembro. Entrada franca. Ingressos devem ser retirados pelo site Eventim.
DEBATE COM ARTISTAS
Nesta quarta (29/6), às 19h, haverá debate sobre a mostra “Brasilidade Pós-Modernismo” com a curadora, Tereza de Arruda, e os artistas Armarinhos Teixeira, André Azevedo, Joaquim Paiva, Francisco de Almeida e Luzia Simons. Após a conversa, o grupo irá conduzir uma visita mediada à exposição. Entrada franca. Ingressos devem ser retirados pelo site Eventim.