Em 1989, Manu Joker era conhecido como dono das baquetas do Sarcófago no EP “Rotting”, considerado um dos principais trabalhos da banda belo-horizontina de death/black metal. Quatro anos depois, o então baterista e futuro vocalista seguiria outro caminho artístico ao criar o Uganga, tendo o thrash metal e o hardcore como cerne, acrescentando a seu leque musical elementos oriundos do dub, do hip-hop, do cancioneiro regional (nordestino e mineiro, por exemplo) e do pop.
À beira de completar três décadas, o grupo do Triângulo Mineiro lança nesta sexta-feira (1º/7) o EP “Libre!”, cujo sugestivo título remete à liberdade tão almejada e alcançada por seu líder, acompanhado atualmente por Christian Franco (guitarra), Umberto “Growler” Buldrini (guitarra e voz), Raphael “Ras” Franco (baixo e voz) e Marco Henriques (bateria).
Uganga rejeita 'empáfia' nacional
“A escolha (do título “Libre!”) se deu pelo fato de nos afirmarmos como parte de um único e diversificado povo na América do Sul. Somos filhos da mesma terra e das mesmas causas. Acho insano o Brasil só olhar para a América do Norte ou para o outro lado do Atlântico, inclusive culturalmente. As coisas têm melhorado, é claro, mas ainda rola uma certa empáfia em relação ao resto do continente – para mim, uma tremenda burrice. A exclamação deixa isso ainda mais claro, como um grito, uma declaração”, diz.
A capa do EP, assinada por Artur Fontenelle, da Deadmouse Design, se entrelaça ao título e às mensagens das letras. “Ela retrata elementos do cerrado mineiro, nossa casa. O cão preto em frente ao pequizeiro e as caveiras fazem referência a Omulu, senhor da terra, da vida, das doenças e da renovação. O arame farpado remete a Exu, o mensageiro, e o carcará se desfazendo em vários pássaros menores simboliza essa liberdade”, relata Manu.
Assim como outras obras da banda, o novo rebento do Uganga transita por várias sonoridades, sem deixar de lado o DNA do primeiro registro, “Atitude Lotus” (2002).
O vocalista comenta que o intuito de “mostrar as várias cores do Uganga de maneira nua e crua” foi crucial para gerar faixas com diferentes camadas, que se complementam.
“Elas criam a sensação de continuidade e unidade durante toda a audição.Tem velocidade, agressividade, calmaria, groove, música eletrônica, moderna e old school. Tudo isso é Uganga”, enfatiza.
A primeira amostra dessa versatilidade é “Terra dos ventos”, cartão de visitas guiado por crossover metal/hardcore, com acento rap e a participação da vocalista Yasmin Amaral, da banda paulista de thrash Eskröta.
Lacradores na mira de Manu Joker
Em termos líricos, “Terra dos ventos” tem como alvo “os ‘humildes profissionais’ que se vendem como revolucionários, mas só pensam em lacrar e fazer média”, diz Manu.
“É sobre padronização estética, rebeldia fabricada, hype, falsidade e modismos. Tenho visto muita mentira ser embalada como verdade, muita cópia malfeita ser tratada como novidade por desinformados ou por quem lucra com a desinformação”, destaca.
Confira clipe de 'Lobotomia' (2020), sobre o holocausto brasileiro no hospício mineiro de Barbacena:
Já “Mal vinda morte dos teus sonhos” emerge com faceta mais “etérea”, enquanto homenageia Exu, um dos principais orixás no candomblé.
“Exu é a ligação entre nosso mundo e o mundo de lá, é conhecimento, força e, com certeza, liberdade e amor. A parte instrumental traz vibe mais gelada, algo que possa remeter ao black metal e se casa bem com a temática, mas tem muito groove. Isso se repete nos vocais, na fusão de backing vocals melódicos e etéreos com minha interpretação mais ríspida e old school, porém num flow de rap”, define Manu.
"Não deixamos de nos posicionar, mas nunca querendo dar palestra ou pagar de professor. (...) Acho muito chato em algumas bandas atualmente a obrigação comercial de falar de tudo, inclusive do que não se acredita ou conhece para buscar aprovação"
Manu Joker, compositor e vocalista
A terceira faixa, “Alguidar”, traz mudança mais drástica na musicalidade do álbum, com o metal cedendo lugar ao rap e ao dub. Algo que pode até causar “espanto” a alguns ouvintes. “Consigo imaginar a cara de alguns desavisados (risos)”, comenta o vocalista.
“Acredito que uma das funções da arte seja espantar, chocar, tirar da zona de conforto; creio que todo radicalismo é nocivo. Não está entre nossas preocupações agradar a todos, assim como também não buscamos desagradar, é só o Uganga sendo Uganga mais uma vez. Todos os nossos álbuns têm essas pequenas pontes mais experimentais. A letra é homenagem ao meu querido irmão Juarez ‘Tibanha’ Távora (da banda Cirrhosis), que nos deixou há pouco tempo”, continua.
Manu diz que o Uganga jamais teve medo de se posicionar, inclusive com críticas à administração de Jair Bolsonaro (PL). “Nunca levei esse governo a sério, lamento pelos que levaram”, sintetiza.
“Defendemos o que acreditamos, não deixamos de nos posicionar, mas nunca querendo dar palestra ou pagar de professor. É o pensar, o refletir que nos move, não o doutrinar”, ressalta. “Acho muito chato em algumas bandas atualmente a obrigação comercial de falar de tudo, inclusive do que não se acredita ou conhece para buscar aprovação. Lugar de fala é importante, mas é preciso saber o que falar para validar e respeitar esse lugar. Máscaras sempre cairão”, afirma.
Uganga planeja turnê de 30 anos
Em 2023, a banda completa 30 anos. “É uma vida, cara! Será muito foda, de repente, fazer uma turnê tocando material de toda nossa discografia, convidar ex-integrantes, amigos, etc. Já pensamos em várias ações: o ‘Libre! em vinil, relançamentos, compilação, disco de covers, split com outra banda, tour na América Latina ou até, quem sabe, um novo trabalho de inéditas”, diz Manu.
“LIBRE!”
.EP da banda Uganga
.Sete faixas
.Xaninho Discos
.Disponível nas plataformas digitais