Onze anos em cartaz (1986 a 1997) garantiram à primeira montagem de “O mistério de Irma Vap” no Brasil a entrada no livro “Guinness World Records”. Eram Marília Pêra (1943-2015) na direção de Ney Latorraca e Marco Nanini no palco, em uma aeróbica maluca de troca de roupas – dezenas de vezes, o que ficou na memória de muita gente sobre o besteirol de Charles Ludlam (1943-1987), que surgiu em 1984 como um espetáculo off-Broadway.
“Todo mundo monta Shakespeare, Nelson Rodrigues. Por que não se pode montar de novo o texto de Charles Ludlam?”, questiona o diretor Jorge Farjalla, que, em 2018, foi convidado para encenar uma nova versão do texto – a terceira no país, já que em 2008 a peça, novamente sob a direção de Marília, foi montada com Marcelo Médici e Cássio Scapin no elenco.
Com duas apresentações – neste sábado (2/7) e domingo (3/7), no Sesc Palladium, dentro do projeto Teatro em Movimento –, “O mistério de Irma Vap” traz a Belo Horizonte Luis Miranda e Mateus Solano interpretando oito personagens.
A trama acompanha a difícil adaptação de Lady Enid à vida no castelo do novo marido, Lord Edgard, no interior da Inglaterra. Ali, ela será perseguida pelo fantasma da primeira mulher dele e perturbada por uma governanta.
A trama acompanha a difícil adaptação de Lady Enid à vida no castelo do novo marido, Lord Edgard, no interior da Inglaterra. Ali, ela será perseguida pelo fantasma da primeira mulher dele e perturbada por uma governanta.
Farjalla só aceitou assumir uma nova montagem porque teve carta branca para fazer o que quisesse. Para início de conversa, acabou com o cenário original. Ao invés de uma mansão, a história se passa em um trem fantasma de um parque de diversões abandonado.
Mais atores
“Também decidi mostrar ao espectador a troca de roupas (tudo acontece em cena) e colocar mais quatro atores (as versões anteriores tinham somente a dupla de protagonistas) para trazer a coxia para a encenação. Eles fazem uma banda, além de representar camareiros e manipular o cenário. São facilitadores da execução”, diz o diretor.Farjalla faz na peça uma homenagem ao cinema de terror dos anos 1980, que ele acompanhava quando criança. Incluiu até uma menção ao clássico clipe de “Thriller”, de Michael Jackson. Com liberdade para fazer o que quiser, o encenador cortou um ato da peça e veio cortando ainda mais desde sua estreia, no início de 2019. Interrompida em decorrência da pandemia, “Irma Vap” retornou aos palcos no começo deste ano.
“Depois de dois anos com a peça ‘adormecida’, foi muito bacana voltar, pois percebi que a saudade do palco não era só de quem trabalha em cima dele. O público está voltando muito ávido. Durante a pandemia ficamos com medo, pensando onde o teatro iria parar. Acho que depois de tanta tecnologia, tudo o que acontece ao vivo passou a ter mais importância”, comenta Solano.
O ator admite que só aceitou participar do espetáculo por causa da direção de Farjalla. “A princípio, ‘Irma Vap’ é uma peça de puro entretenimento. Fez muito sucesso, não via outro sentido em montá-la.
Mas Farjalla é um diretor conhecido por modificar aquilo em que bota a mão e acabou transformando a peça numa homenagem ao próprio fazer teatral”, comenta Solano. Nem ele nem Luis Miranda assistiram às versões anteriores. “O que foi bom, pois partimos do zero.”
Mas Farjalla é um diretor conhecido por modificar aquilo em que bota a mão e acabou transformando a peça numa homenagem ao próprio fazer teatral”, comenta Solano. Nem ele nem Luis Miranda assistiram às versões anteriores. “O que foi bom, pois partimos do zero.”
O texto de 40 anos atrás ganhou não só atualizações, mas uma cor brasileira. “Os personagens fazem, de forma natural, piadas e comentários sobre alguma coisa que está acontecendo. Tem uma hora, por exemplo, em que a gente faz referência a uma atriz – a cada espetáculo vamos mudando o nome. Como a realidade está muito fértil, ela nos dá material para atualizar ‘Irma Vap’”, diz Solano.
O ator afirma que o espetáculo é bastante exaustivo. “Além das trocas de roupa, a gente está o tempo todo falando. Às vezes faço o diálogo entre dois personagens: um faz a pergunta, eu troco de roupa e depois respondo como sendo o outro. E o Farjalla ainda inventou o trem fantasma. Então tem rampa, escada e muito sobe e desce”, afirma.
“O MISTÉRIO DE IRMA VAP”
De: Charles Ludlam. Direção: Jorge Farjalla. Com Luis Miranda e Mateus Solano. Neste sábado (2/7), às 21h, e domingo (3/7), às 19h, no Sesc Palladium (Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro, (31) 3270-8100). Duração: 100 min. Ingressos: R$ 80 e R$ 40 (meia). À venda no local e no site Sympla.
ESPECIALISTA EM DESCONSTRUÇÃO
Nascido em Catalão, interior de Goiás, Jorge Farjalla se profissionalizou em teatro no Triângulo Mineiro. Formou-se em artes cênicas na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), onde também atuou como professor. Deixou Minas Gerais há quase 18 anos, quando chegou ao Rio de Janeiro.
A grande virada na carreira foi a montagem de “Doroteia” (2016), texto de Nelson Rodrigues estrelado por Rosamaria Murtinho e Letícia Spiller. “Antes de mais nada, sou muito grato à Rosamaria Murtinho, minha madrinha na arte. Foi ela que chegou para mim dizendo que eu era o único cara que poderia desconstruí-la. Então, se hoje os artistas vêm atrás de mim para trabalharmos juntos, é graças a ela.”
Desde então, montou “Senhora dos afogados”, outro Nelson Rodrigues, com João e Rafael Vitti fazendo pai e filho nos palcos; “Vou deixar de ser feliz por medo de ficar triste”, de Yuri Ribeiro, com o próprio em cena, além de Paula Burlamaqui e Vitor Thiré.
Encerrou há pouco em São Paulo, onde vive atualmente, temporada de “Brilho eterno”, com Reynaldo Gianecchini e Tainá Muller, a partir do filme de 2004 com Jim Carrey e Kate Winslet – a peça voltará para nova temporada paulistana, outra carioca, uma em Portugal e, a partir de 2023, vai viajar pelo país.
Exigência
Com prêmios em sua trajetória de encenador e casas cheias, Farjalla comenta sobre trabalhar no teatro com nomes conhecidos da TV. “Não é todo mundo que sabe que o Luis Miranda e o Mateus Solano começaram no teatro. Sempre fui apaixonado pelo trabalho do Luis, que conheci no ‘Apocalipse 1,11’ (2000), do Teatro da Vertigem. Os atores se tornaram populares pela televisão, mas o legal é que a galera vai vê-los e os encontra em outro lugar, já que meu nível de exigência é muito grande. Talvez seja por isto que os atores me procuram: eles querem ser desafiados.”
Mas nem tudo são flores, muito antes pelo contrário. “Me fodi na pandemia como todo mundo. Perdi casa, tudo, e somente a partir de setembro do ano passado comecei a me reestruturar. Todos nós perdemos muita gente (na pandemia), e ainda estamos em luto”, afirma Farjalla.
Com a carreira se estabilizando novamente, o diretor se prepara para estrear este ano um novo espetáculo. “O quê que a gente vai fazer com o Walter?” é um texto de humor negro do diretor e roteirista argentino Juan José Campanella. “Estou virando o cara das comédias. E esta é inteligentíssima, sobre etarismo, um problema grave no Brasil e no mundo”, diz Farjalla. Grace Gianoukas e Elias Andreato estarão no elenco.