O recém-lançado filme Elvis, do cineasta australiano Baz Luhrmann, é um retrato sobre a vida e a época de Elvis Presley, feito com todos os intensos movimentos de câmera que se esperaria do aclamado diretor de Romeu + Julieta e Moulin Rouge - Amor em Vermelho.
A história é narrada a partir da perspectiva do empresário de Elvis, o "coronel" Tom Parker, interpretado por Tom Hanks. Parker é retratado como um narrador não confiável, que ajudou Elvis a sair de um contexto de pobreza para se tornar o "rei do rock".
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O Parker interpretado por Hanks é um empresário experiente que, ao lado de Sam Phillips (Josh McConville) da Sun Records, vê em Elvis um músico que pode levar o rock, um som que se desenvolvia em clubes underground negros, para o mainstream americano.
Aviso: este artigo contém linguagem que alguns leitores podem considerar ofensiva.
Luhrmann mostra como Elvis transformou músicas — incluindo Hound Dog, inicialmente interpretada por Big Mama Thornton, e o clássico de blues de Arthur "Big Boy" Crudup, That's All Right — em sucessos nas paradas da Billboard. Elvis era conhecido como um cantor branco que "soava como negro".Os críticos da época diziam que ele pegou emprestada algumas de suas técnicas infames de performance de músicos negros; seus quadris giratórios viraram assunto no país, rendendo a ele o apelido Elvis, the Pelvis ("Elvis, a pélvis").
Austin Butler imita Presley de forma fantástica, em uma performance que provavelmente tornará o ator um nome conhecido.
O filme retrata a ascensão meteórica do cantor e mostra Parker pegando metade de seus ganhos e sendo rápido em evitar possíveis problemas.
Quando há um furor em relação ao rebolado de Presley, ele convence o músico a criar um estilo de apresentação mais familiar.
Quando Elvis quer fazer uma turnê internacional, é Parker quem organiza a lendária temporada em Las Vegas.
As frustrações de Presley são saciadas por seu saldo bancário, mesmo quando ele notoriamente ganha peso, e seu brilho começa a desvanecer.
O filme biográfico se esquiva de aprofundar o relacionamento de Elvis com Priscilla Presley, concentrando-se em sua carreira e, curiosamente, seu relacionamento com a comunidade negra.
Elvis nasceu pobre e cresceu no bairro majoritariamente negro de Tupelo, no Estado americano do Mississippi.
Ele cresceu cercado de negros e, quando se mudou para Memphis, no Estado do Tennessee, era tão fã de black music que fazia covers das músicas que ouvia.
Era amigo do cantor e compositor de blues BB King, interpretado no filme por Kelvin Harrison Jr.
Dentro deste cenário, o filme alega que Elvis foi fundamental para ajudar os negros a obter direitos iguais nos EUA. Faz isso por meio da narração de Parker, que atua como porta-voz de uma ideia formulada por Michael T Bertrand no livro Race, Rock and Elvis.
Bertrand argumenta que, cantando músicas até então atribuídas a músicos negros, Elvis ajudou os sulistas brancos a repensar sua atitude em relação à raça, levando a um ímpeto ignorado (bem, pelo menos até o filme de Luhrmann) dos brancos apoiarem o movimento pelos direitos civis.
"Elvis representou uma geração que surgiu em um momento em que havia muitas mudanças acontecendo no sul", disse Bertrand, que também é professor de história na Universidade do Estado do Tennessee, à BBC Culture.
"Uma das mudanças tinha a ver com a evolução da programação negra de rádio, e no final da década de 1940, adolescentes como Elvis estavam sintonizados, [o que deu a eles] um tipo diferente de perspectiva sobre raça dentro de uma sociedade segregada. À medida que vai ficando mais velho, Elvis tem um apreço pela cultura afro-americana, e foi atraído pela música negra de uma forma que seus avós não seriam. À medida que se tornou popular, Elvis mostrou que era 'ok' [para os brancos] apreciar a cultura negra."
"Elvis e seus colegas do sul são os primeiros garotos brancos a consumir rhythm and blues. Isso é um avanço, e houve enormes ramificações disso", acrescenta o autor.
Na opinião dele, o rock e Elvis "introduziram um público e um grupo maior de pessoas a uma cultura que estava por trás do véu da segregação. Abriu a sociedade de uma maneira positiva".
A contribuição de Elvis foi feita por meio de suas ações, e não por meio de qualquer grande declaração pública, acredita Bertrand.
"Não acho que Elvis era político no sentido de que iria em passeatas e coisas assim. Estes músicos estavam preocupados com suas carreiras primeiro, e não faziam declarações políticas. Fizeram suas declarações com sua escolha de música. No contexto da segregação em que viviam, esta foi uma declaração importante. Nos anos 1950, muitos artistas de rhythm and blues disseram que estavam felizes por Elvis ter aberto as portas porque a música se tornou acessível. A questão era que, por ser branco, ele tinha acesso a casas de shows que alguns de seus colegas e contemporâneos não tinham."
Mas, do mesmo modo, outros críticos veem Elvis como uma figura problemática em relação à raça, alegando que ele se apropriou da música negra — e alguns chegam a afirmar que ele é racista.
Um comentário infame e contundente sobre Elvis em relação à raça pode ser encontrado na letra de Fight the Power, do grupo Public Enemy, música escrita para o influente filme de Spike Lee Faça a Coisa Certa, em 1989.
Um trecho da letra pode ser traduzido assim: "Elvis foi um herói para a maioria, mas ele nunca significou merda nenhuma para mim. Um verdadeiro racista aquele otário, simples assim."
Foi uma declaração chocante para muitos. Reza a lenda que Elvis inventou o rock e mudou a alma da música moderna. Mas aqui estava Chuck D, do Public Enemy, um popular músico e letrista negro, se manifestando contra Elvis.
Desde então, Chuck D foi convidado a justificar a letra em várias ocasiões, e baixou um pouco o tom.
No entanto, ele argumenta que a posição exaltada de Elvis se deu às custas dos músicos negros, que consequentemente não receberam o que mereciam.
No documentário de 2017 de Eugene Jarecki, The King, o letrista do Public Enemy afirma:
"Sam Philips era um empresário. Ele tentou vender estes discos com negros e não conseguiu. Ele encontrou alguém para vender um som negro para rostos brancos, ele sabia o que vender para os EUA. Isso não é um problema. A cultura deve ser compartilhada. O que me deixa ofendido é que Elvis não era mais rei do que Little Richard, Bo Diddley e Chuck Berry. Então, quem o está consagrando rei?"
Para alguns, isso faz de Elvis o rei da apropriação. O artigo de Helen Kalowole no jornal britânico The Guardian, He Wasn't my King, argumenta que a brancura de Presley permitiu que ele ficasse famoso e rico cantando músicas que não eram ouvidas quando emanadas dos negros que as originaram.
Como diz Michael Bertrand:
"A coisa da apropriação vai ser uma discussão que acompanha [Elvis]. A indústria da música era extremamente discriminatória. Eles entendiam que havia adolescentes brancos e negros ouvindo rhythm and blues, e eles estavam procurando um rosto branco para atrair um público mais amplo, e foi Presley. Acho que a indústria estava numa onda de apropriação, e Elvis de apreciação. Quando Elvis entrou em um estúdio de gravação, ele não escrevia suas próprias músicas, ele basicamente queria gravar tudo no rádio que ele gostava."
"O problema é que a indústria da música fez dele a única figura do rock. Elvis não pensava assim, ele apreciava músicos negros. Encontro muitas pessoas que gostam de Elvis, mas têm problemas com a forma como ele foi exaltado, quando músicos como Fats Domino, Little Richard e Chuck Berry fizeram grandes contribuições."
Chuck D sugere que o racismo mencionado em seu rap está em outro lugar, no racismo sistêmico da indústria da música, e que a cultura negra é continuamente repaginada e vendida ao público de uma forma que esconde suas raízes negras.
"Fui convencido de que Elvis era outro explorador da cultura negra para ganhos comerciais brancos por Chuck D", disse o musicólogo Neil Kulkarni, autor de The Periodic Table of Hip Hop, à BBC Culture.
"Aquela frase me fez pensar muito sobre apropriação cultural. Muito da história do pop é a história da inovação negra sendo roubada pelo negócio da música branca, clareada e empacotada, e vendida para o público branco. Isso é verdade até hoje. Se Elvis era um racista ou um herói dos direitos civis, acho que a verdade deve estar no meio".
Rompendo barreiras
O jornalista e apresentador Jonathan Wingate visitou Tupelo — onde Elvis passou os primeiros anos de sua vida — para um programa da BBC Radio 5 Live.
"Conversei com muitas pessoas, e uma delas era Sam Bell, seu melhor amigo até deixar Tupelo, que me disse que Elvis não era racista."
"As crianças brancas podiam brincar com as crianças negras quando eram pequenas", diz o jornalista musical Phil Sutcliffe à BBC Culture.
"Mas depois, por convenção e imposição dos pais, quando chegavam a uma certa idade, não tinham permissão para se misturar. Esse é o ponto em que Elvis se tornou notável porque, naquele momento, ele não ergueu a barreira que a convenção ditava."
Conforme Wingate disse à BBC Culture: "Acho que tudo se resume à percepção, e a percepção cultural agora é muito diferente do que era quando Elvis apareceu pela primeira vez sob os holofotes. Seu relacionamento com a música afro-americana é complexo."
"Quando ele apareceu pela primeira vez nas ondas do rádio, foi ao mesmo tempo em que todas as campanhas contra a segregação racial no sul dos Estados Unidos estavam explodindo em todos os lugares. Elvis não poderia ter existido sem o blues, o rhythm and blues e a música gospel. Mas se você chama isso de apropriação cultural — ou acredita que apenas teve uma influência inabalável no estilo de Elvis — está em debate. Diria apenas que ele tinha um gosto impecável."
Wingate consegue entender por que o filme enaltece o papel de Elvis no movimento dos direitos civis, mesmo que ele próprio não fizesse isso com tanta ousadia.
"Grande parte dos EUA era segregado na época, e você se pergunta o quanto essa música teria sido palatável para o mainstream dos EUA naquele momento. Elvis de alguma forma fez as coisas ficarem bem. Eu diria que Elvis abriu as portas para muitos desses artistas."
Wingate sente que Elvis fez o máximo que era possível para ele na época.
"Não acho que seja uma surpresa que ele não tenha se manifestado", diz ele.
"Meu palpite é que ele não tinha consciência política... Pessoas como Tom Parker não o deixariam fazer isso, pois seria visto como subversivo demais."
"Quando ensino meus alunos", conta Kulkarni, "mostro a eles dois vídeos, Little Richard cantando Tutti Frutti e Pat Boone cantando a mesma música. Boone é sua típica versão anódina, e é aquela velha história da inovação negra sendo marginalizada e reembalada. Elvis é algo com mais nuances. A indústria é sempre racista, mas os artistas em si, isso é mais complexo."
Le Gendre e Sutcliffe creem que ter impacto não é suficiente para ser exaltado como herói dos direitos civis.
"Não acredito nisso", diz Le Gendre.
"Acho que se você realmente quer contribuir para os direitos civis, você deve entrar na linha de frente e marchar. Isso é o que estava acontecendo e era necessário na época".
"Ele deu algum apoio anonimamente", diz Kulkarni.
"Isso é ótimo. É uma pena que uma figura tão grandiosa não possa ter apoiado mais."
"Tenho dúvidas sobre seu papel no movimento pelos direitos civis. A indústria tem uma longa história de encontrar rostos brancos para reembalar rostos negros para o mainstream, o que acontece ainda hoje. O uso da música negra com rosto branco é apenas como o comércio funciona", argumenta Le Gendre.
"É concebida para que as pessoas se divirtam, gastem dinheiro, dancem. Depois vão para casa. Não vão a passeatas ou tentam mudar os EUA."
Isso não quer dizer que Presley não fez nada — ele mostrou apoio a artistas e causas negras.
Ele participou, por exemplo, do Goodwill Revue de 1956 em Memphis, o concerto beneficente anual da estação de rádio WDIA para ajudar as crianças carentes da cidade.
Entre as atrações, todas negras, estavam nomes como BB King e outras grandes estrelas da época.
Embora o contrato de gravação de Presley não permitisse que ele se apresentasse, ele apoiou dos bastidores.
E quando convidado ao palco, saudou a multidão histérica com seu rebolado frenético.
Para BB King, a presença de Elvis no espetáculo disse tudo: "Acredito que ele estava mostrando suas raízes. E ele parecia orgulhoso dessas raízes", afirmou.
É claro que sempre há várias perspectivas sobre a vida de uma figura lendária, e o filme de Baz Luhrmann é apenas uma interpretação.
E cada um de nós tem sua própria percepção sobre Elvis, do homem, da sua música e do que ele defendeu — ou não.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.
- Texto originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-62009442
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