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Estado de Minas LITERATURA

Beth Goulart transforma dor em afeto em livro dedicado à mãe Nicette Bruno

Atriz lança "Viver é uma arte - Transformando a dor em palavras". Obra traz olhar pessoal frente a morte da mãe, vítima de COVID


11/07/2022 04:00 - atualizado 10/07/2022 21:15

Beth Goulart e Nicette Bruno em cena do espetáculo 'Perdas e ganhos'
Beth Goulart e Nicette Bruno em cena do espetáculo 'Perdas e ganhos', em 2014 (foto: Nana Moraes/Divulgação)

"Quando você consegue entender os ciclos da vida, entende que tudo faz parte de um processo de aprendizado. A saudade você lida para sempre, mas o processo da dor vai diminuindo"

Beth Goulart, atriz


Início dos anos 1970. Em São Paulo, Nicette Bruno (1933-2020) se preparava para subir ao palco do Teatro de Arena para mais uma sessão do espetáculo “Os efeitos do raio gama nas margaridas do campo”. Um pouco antes, o produtor da montagem, Luís Carlos Arutin (1933-1996), foi até o camarim e avisou que a noite estava fraca – havia nove convidados e um único pagante. Não seria melhor cancelar?
Nicette nem titubeou: “Não, ele saiu de sua casa para nos ver. Ele pagou para nos ver, então vamos fazer o melhor espetáculo da nossa vida porque ele merece.” O único pagante era o diretor de uma empresa, que acabou comprando 100 sessões da montagem (que inclusive valeu um Prêmio Molière de melhor atriz) para ser apresentada para seus funcionários. Nicette, na época, dividia a cena com sua filha do meio, a então adolescente Beth Goulart.

Tal história integra o livro “Viver é uma arte – Transformando a dor em palavras”, que Beth, filha dos atores Nicette Bruno e Paulo Goulart (1933-2014), está lançando pela editora mineira Letramento. Ainda que tenha um aspecto biográfico, trazendo passagens de sua trajetória artística, como da dos pais, é uma relato pessoal da atriz frente à morte da mãe, que sucumbiu à COVID em dezembro de 2020, aos 87 anos.

A ideia do livro é anterior à perda. Desde a morte de Goulart, mãe e filha, atrizes, melhores amigas e também vizinhas, vinham fazendo palestras sobre sua filosofia de vida (os Goulart, pais e três filhos atores, são espiritualistas). “A superação da morte dele, a peça de teatro (‘Perdas e ganhos’, monólogo com Nicette adaptado e dirigido por Beth a partir do livro homônimo de Lya Luft) nos aproximou muito. Assim como fazíamos nas palestras, que seria a voz principal e mamãe faria seus comentários maravilhosos.”
Beth Goulart entre os pais, os atores Paulo Goulart e Nicette Bruno, em 1978
Beth Goulart entre os pais, os atores Paulo Goulart e Nicette Bruno, em 1978 (foto: Arquivo Pessoal/Divulgação)

NÉLIDA PIÑON E FERNANDONA 
Com o projeto em fase inicial, Beth teve três encontros com a mãe para realizar as gravações, que posteriormente seriam transcritas. O projeto parou com a morte de Nicette, só retomado seis meses mais tarde, já com outro propósito. “É muito difícil você voltar, pois mergulha em um processo emocional muito profundo. Tive que esperar para voltar à vida normal”, continua.

A obra, o primeiro livro de Beth (seus textos anteriores são todos voltados para a dramaturgia), conta com duas madrinhas de peso. A escritora Nélida Piñon e a atriz Fernanda Montenegro, ambas integrantes da Academia Brasileira de Letras, são responsáveis pelo prefácio e pelo posfácio, respectivamente.

Fernanda estava na plateia quando Nicette, adolescente, estreou no teatro ao lado de Dulcina de Morais. E as duas estiveram juntas quando a própria Fernanda fez seu début nos palcos. “Por incrível que pareça, é possível criar famílias no teatro”, escreveu ela.

A narrativa tem início a partir da morte de Paulo Goulart, após uma luta de quatro anos contra um câncer. Beth descreve como ela e a família lidaram com este primeiro grande luto que ressoou em todo o país, “uma dor coletiva”, ela descreve. Ao mesmo tempo, o livro acompanha, a partir das lembranças registradas por Nicette, o início da relação de um dos casais mais populares da TV e do teatro do Brasil.

Os dois se conheceram no início da década de 1950, quando ela dirigia o Teatro de Alumínio. Nicette faria o principal papel feminino de “Senhorita minha mãe”, texto de Louis Verneuil. Para o papel do galã, houve um teste com um jovem ator, que ela não conhecia. Paulo entrou para a montagem e não demorou para que Nicette ficasse sabendo que ele estava apaixonado por ela.
Beth Goulart, Eleonor Bruno (vovó Nonoca), Nicette Bruno, Paulo Goulart e Flordea (Dedéia), em foto de família, 1982
Beth Goulart, Eleonor Bruno (vovó Nonoca), Nicette Bruno, Paulo Goulart e Flordea (Dedéia), em foto de família (foto: Arquivo Pessoal/Divulgação)

HERANÇA DE ALMA 
Numa festa após uma apresentação, ele pediu que ela recitasse um poema. Nicette o fez, mas Goulart não estava presente. Ela foi atrás dele e perguntou o porquê. “Eu pedi para declamar só para mim, e não para essa gente toda”, foi o que ele respondeu a ela. Nunca mais se largaram.

Com pais atores, foi natural que os filhos seguissem os passos. “Mas acho que vocação seja uma herança mais da alma do que do corpo. Ou então todo filho de médico seria médico. Se você tem aptidão e nasce em uma família com essa tradição, o chamado acaba sendo mais forte”, afirma Beth.

Nicette chamava da estreia de Beth nos palcos uma aparição que ela fez aos 3 anos, “literalmente seguindo os passos do meu pai a partir da coxia”, ela conta. Goulart encenava “Escola de mulheres”, no Teatro Guaíra, em Curitiba, quando a menininha, que estava na coxia, começou a segui-lo no palco. A plateia começou a rir e o ator, em cena, não percebeu que a filha pequena estava atrás dele.

“Eu brincava de fazer teatro em cena e o Antônio Abujamra (1932-2015), vendo as brincadeiras, me chamou para estrear profissionalmente”, conta Beth. Este batismo ocorreu justamente na montagem “Os efeitos do raio gama...”, quando ela tinha 14 anos. Além de Nicette e Beth, a peça contava ainda com sua avó materna, Eleonor Bruno (1913-2004) no elenco. Posteriormente, sua irmã mais velha, Bárbara Bruno, entrou para o elenco.

Ao longo da obra, Beth vai descrevendo os momentos marcantes de sua carreira, como a montagem “Simplesmente eu, Clarice Lispector” (2009) e os personagens que fez na televisão.

Com a morte de Goulart, mãe e filha se aproximaram ainda mais. “Com o tempo, inevitavelmente viramos mães dos nossos pais. É um processo natural: fomos cuidados durante muito tempo, então chega uma hora em que passamos a cuidar.” Além do trabalho, Beth incluía a mãe em tudo o que fazia.

REDES SOCIAIS 
As três semanas entre o resultado positivo para a COVID e a morte de Nicette foram acompanhadas pelos fãs pelas redes sociais. “As pessoas me procuravam muito para saber notícias e chegou uma hora em que eu não conseguia falar com um ou outro. Resolvi ir para as redes, uma forma de multiplicar informações aos interessados.”

Beth manteve o canal aberto até o fim. “Eu não podia esconder o que estava acontecendo e, por outro lado, não podia perder a esperança. Fui muito amparada (por meio das mensagens via rede social) e vi que não estava sozinha vivendo aquilo. Eram muitas pessoas na mesma situação. Tinha gente que entrava em contato falando que tinha acabado de perder a mãe e não sabia o que fazer. Eu mandava uma mensagem pessoal. Isso criou uma corrente de solidariedade, compaixão e amor mútuo.”

Após o impacto da morte de Nicette – “uma dor aguda em que você não consegue fazer nada” – Beth foi, aos poucos, aprendendo a lidar com sua ausência. “Não é à toa que a Lya Luft escreveu, em ‘Perdas e ganhos’, que aprender a perder a pessoa amada é, afinal, aprender a ganhar-se, assumindo o bem que ela representa. Quando você consegue entender os ciclos da vida, entende que tudo faz parte de um processo de aprendizado. A saudade você lida para sempre, mas o processo da dor vai diminuindo”, finaliza.

Nicette ganha biografia de Cacau Hygino 
Capa do livro 'Nicette Bruno: Mãe de todos'

Nesta semana, a Editora Letramento lança outro livro dedicado a Nicette. Assinada pelo escritor, dramaturgo e ator Cacau Hygino, a biografia “Nicette Bruno: Mãe de todos” (300 páginas, R$ 79,90) traz depoimentos da própria atriz, além de amigos e familiares, destacando momentos de sua carreira. Hygino é autor de livros sobre Nathalia Timberg, Zezé Motta e Irene Ravache.

Capa do livro Viver é uma arte - Transformando a dor em palavras

“VIVER É UMA ARTE: TRANSFORMANDO A DOR EM PALAVRAS”
De Beth Goulart
Editora Letramento
138 páginas
Preço: R$ 59,90 (livro) e 
R$ 34,90 (e-book)


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