Diante de uma catástrofe iminente, aqueles que já viveram mais chegam mais bem preparados para o porvir. Foi a partir desta observação que a escritora Juliana Leite desenvolveu seu segundo romance, “Humanos exemplares”, que chega nesta semana às livrarias pela Companhia das Letras.
A protagonista é uma viúva centenária, Natália, que vive reclusa em seu apartamento. Este afastamento da vida lá fora não se dá somente por causa de uma ameaça que assombra a todos, mas pela pura solidão. Ela passa seus dias aguardando os telefonemas da filha que mora em outro país, “no oceano superior”, como diz.
A filha é, basicamente, a única pessoa com quem Natália conversa diariamente, pois seus amigos, os “queridos”, já morreram. A partir desta reclusão, ela faz uma revisão não só da própria vida, mas da de todos aqueles de quem foi próxima.
“A nossa idade produtiva é muito entretida. Temos mil compromissos, temos o papel de pai ou mãe, o profissional. O funil do envelhecimento dá a chance de tirar as ‘roupas’. Você não precisa mais exercer o papel profissional, ou de pai e mãe. Vai ser tornando como um núcleo duro da humanidade, que é quando você pode ser quem é. A Natália vai se desfazendo dela mesma ao longo do livro, que, cada vez mais, vai se tornando a história dos outros”, comenta Juliana.
Cicatrizes
A autora petropolitana, de 39 anos, estreou no meio literário em 2018, quando levou o prêmio Sesc de Literatura na categoria romance por “Entre as mãos” (Record). A narrativa acompanha Magdalena, uma tecelã que, depois de um grave acidente, precisa reaprender a falar e levar consigo dolorosas cicatrizes ? não apenas no corpo. A obra também saiu vencedora da premiação da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e foi finalista dos prêmios Jabuti, São Paulo e Rio de Literatura.“Humanos exemplares” foi escrito no primeiro ano da pandemia. Ainda que o romance seja atravessado por uma crise que coloca a todos em risco, a pandemia não é abordada, sequer nomeada. “Essa ameaça exterior não identificada pode ser qualquer coisa, não necessariamente o vírus”, comenta Juliana.
“Naquele momento (início da pandemia) em que eu precisava de um companheiro, para minha sorte surgiu a Natália. Eu ficava pensando como poderia escrever sobre a diminuição da vida e, quando percebi que ela seria uma mulher centenária, isto se tornou um gatilho para eu olhar para outros momentos do Brasil, da humanidade, em que aquele que se esconde melhor vai além”, comenta a autora.
Na prosa fluida, em que os tempos e os diversos personagens vão caminhando juntos em uma costura bem amarrada, Juliana dedica um bom pedaço ao período da ditadura militar. Mas seu olhar ali é íntimo, passa ao largo dos grandes fatos políticos.
O leitor vai descobrindo nas páginas que Natália e seu marido Vicente eram professores que reuniam colegas, alunos e amigos para uma popular macarronada. “O macarrão é uma alegoria do quanto a vida era vigiada, de como o alimento compartilhado era fonte de atenção (dos militares), pois ele poderia causar aglomeração”, diz.
Tema proibido
As histórias são sempre da vida comum, cotidiana, do “crochê miúdo”, como diz Juliana. A presença dos militares na cidade afeta até mesmo os cortes de cabelo, já que era na barbearia que as mães poderiam ter notícias dos filhos desaparecidos.“Cresci em Petrópolis ouvindo histórias de uma casa onde as pessoas eram torturadas. Era um tema proibido de se conversar, mas as narrativas chegavam até nós. Acho que (a ditadura) é uma história brasileira coletiva tão forte que sabemos narrar, mesmo não a tendo vivido.”
Juliana afirma que o envelhecimento a fascina. “Cresci em uma casa numerosa e, como os adultos saíam para trabalhar, eu era criada pelos mais velhos. Tenho muito amor pelos meus mais velhos e muita coisa (do livro) veio de histórias que ouvi ao longo do tempo. Não ao pé da letra, mas herdei a sensibilidade deles para o que aconteceu na juventude.”
Ao final do livro, a autora cita seis escritoras que a influenciaram na escrita de “Humanos exemplares”, como Natalia Ginzburg – “É uma referência muito forte no sentido de narrar acontecimentos históricos a partir de núcleos familiares” – e Joan Didion – “Por causa do luto e da relação com a morte.”
“Acho que livros se escrevem junto de outros livros, referências que fazem parte do processo criativo. Já como leitora, escolho livros como companheiros. Tem momento em que você pega um livro e ele não bate, então não era o companheiro para aquele momento. E o impacto que um livro pode representar para a gente faz com que, inesperadamente, ele se volte para nós como um amigo”, afirma Juliana.
“HUMANOS EXEMPLARES”
• Juliana Leite
• Companhia das Letras (248 págs.)
• R$ 69,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book)