Em quatro décadas de carreira, completadas em 2021, Arnaldo Antunes se tornou um dos nomes mais inventivos da música brasileira. Seja como vocalista e compositor da banda Titãs - função que desempenhou de 1981 até 1992 -, ou como o artista solo inclassificável que um dia se juntou com Marisa Monte e Carlinhos Brown para formar os Tribalistas, ele sempre pareceu disposto a tensionar as fronteiras do próprio trabalho, tanto é que também atua como poeta e artista visual.
Não se trata de um show solo. A apresentação conta com o pianista pernambucano Vitor Araújo. No ano passado, a dupla lançou o álbum "Lágrimas no mar", com o qual agora percorre o Brasil em show de formato voz e piano.
"Creio que o momento que estamos vivendo é crucial para todos os brasileiros. A eleição deste ano define não apenas candidatos ou partidos, mas a defesa da própria democracia, ameaçada por um governo extremista, que tem corroído praticamente tudo o que deveríamos prezar como nação: cultura, ciência, educação, meio ambiente, diversidade, saúde, direitos humanos, dignidade, ética, honestidade e o próprio valor da vida humana"
Arnaldo Antunes, cantor, compositor e poeta
"Eu acabo transitando por várias linguagens e sempre houve um trânsito fluente entre elas, talvez por todas envolverem o trabalho com a palavra ou com a significação poética. Nesse show tem poemas intercalados com as canções, para os quais Vitor também criou arranjos de piano. Pela primeira vez, incluí o que eu costumo apresentar em performances de poesia num show de música, e acho que resultou numa mistura interessante das duas linguagens, da poesia e da canção", afirma o artista.
No palco, o cenário é simples. Um microfone e um piano de cauda. A escuridão do teatro também permite intervenções visuais na cena, com projeções de vídeos da artista Marcia Xavier, que participa do show cantando duas músicas junto com Arnaldo Antunes.
A atmosfera é de recital. Além das nove canções que compõem o disco "Lágrimas no mar", entre elas "Fim de festa", de Itamar Assumpção, os artistas também apresentam outros sucessos da carreira de Arnaldo, como "O pulso", "Socorro", "Lua vermelha" e "Saia de mim", e músicas do álbum "O real resiste", lançado em 2020. O registro, ou, na verdade, o show que seria derivado dele, marcou o início da parceria entre os músicos.
"A minha parceria com Vitor começou quando o convidei para apresentar comigo os shows de 'O real resiste', que já é um disco com poucos instrumentos. Decidi acentuar esse caráter concentrado e experimentar pela primeira vez esse formato de apenas voz e piano", conta.
Arnaldo Antunes já conhecia o trabalho do parceiro, que tem dois álbuns de estúdio lançados, "A/B" (2012) e "Levaguiã terê" (2016), além do álbum ao vivo "Toc" (2005). O show que a dupla planejava colocar na estrada, batizado de "O real ao vivo", não ocorreu com presença de público devido à pandemia e, diante da incerta volta dos shows presenciais até o final de 2021, foi apresentado somente em formato on-line.
"Começamos a ensaiar e, quando estávamos prestes a estrear, começou a pandemia e tivemos que cancelar várias datas já marcadas. Depois de alguns meses, fizemos algumas lives em teatros, transmitidas pela internet. Mas, como o retorno aos shows presenciais continuava indefinido, resolvemos ir para o estúdio registrar algo desse trabalho que vinha nos entusiasmando. Aí começamos a ensaiar o que acabou se tornando o 'Lágrimas no mar'", relembra.
Descoberta
Segundo o músico, o que mais o surpreendeu no trabalho ao lado de Vitor Araújo foi a sintonia que os dois tiveram logo de cara. "Foi como a descoberta de uma linguagem comum", ele comenta. Arnaldo Antunes afirma que o parceiro lhe ensinou a ter "concentração, capacidade de síntese e gosto pela experimentação".
"O Vitor trabalha não só com os sons, mas também com os silêncios e expressa o máximo com o mínimo para servir adequadamente às canções", avalia.
Apesar de a pandemia ter sido um período produtivo para o artista - além do álbum, Arnaldo lançou o livro "Algo antigo", pela Companhia das Letras -, ele avalia que o tempo passado em casa foi custoso, principalmente por conta da paralisação na agenda de shows. "Foi bem difícil, acho que desde o início da carreira eu nunca tinha ficado tanto tempo longe dos palcos."
"Agora estamos nos saciando e sinto isso também por parte do público. Há uma comoção especial. Está sendo como voltar à vida. É impressionante como, ao voltarem os shows, a gente percebe o quanto isso nos fez falta", afirma.
Questionado sobre como se sente caso o público se manifeste politicamente durante um de seus shows, Arnaldo Antunes diz: "Palco não é palanque, mas nesse show a música 'O real resiste' acaba sendo um foco claro de manifestação política, na qual também o público acaba se expressando".
Nela, o artista canta versos como "Miliciano não existe/ Torturador não existe/ Fundamentalista não existe/ Terraplanista não existe/ Monstro vampiro assombração/ O real resiste".
Voto
Arnaldo Antunes prefere não comentar a polêmica que envolveu o nome de Carlinhos Brown no último final de semana, quando um vídeo viralizou nas redes sociais mostrando o cantor interrompendo protestos contra o governo durante um show realizado no ano passado. No entanto, assim como o colega dos Tribalistas, Arnaldo Antunes declara que votará no ex-presidente Lula, o que ele chama de "certeira via".
"Creio que o momento que estamos vivendo é crucial para todos os brasileiros. A eleição deste ano define não apenas candidatos ou partidos, mas a defesa da própria democracia, ameaçada por um governo extremista, que tem corroído praticamente tudo o que deveríamos prezar como nação: cultura, ciência, educação, meio ambiente, diversidade, saúde, direitos humanos, dignidade, ética, honestidade e o próprio valor da vida humana", ele afirma. "Num período com esse grau de ameaça, acredito que todos devem exercer sua cidadania e se posicionar, em qualquer área."
TRÊS PERGUNTAS PARA...
VITOR ARAÚJO
pianista e arranjador
O que você aprendeu trabalhando com Arnaldo Antunes? Como você acredita que essa parceria vai impactar os seus próximos trabalhos?
Cada encontro artístico dessa importância impacta a forma com que encaramos o fazer musical, nos faz adquirir novas ferramentas de expressão e de composição, nos faz alargar a forma de olhar as diversas manifestações artísticas, nos amplia o repertório, o vocabulário e o horizonte de possibilidades.
São diversos os artistas que passaram durante a minha vida que causaram esse impacto - tanto quando os ouço, os assisto ou os estudo, mas, principalmente, quando posso trocar e criar junto, como é o caso com o Arnaldo.
Arnaldo é um artista que alcança de maneira muito elástica tanto a música e a literatura quanto às artes visuais e cênicas, e essa amplitude de possibilidades expressivas certamente é algo que eu observo com atenção e guardo com carinho para carregar comigo adiante.
E é um artista que não para de se reinventar, de testar novas possibilidades, tem a inquietude de não parar de procurar novas e mais novas formas de soar, mesmo já tendo uma carreira tão fortemente consolidada.
Nosso show e nosso disco, por exemplo, são um feliz resultado dessa inquietude, dessa abertura ao experimento e dessa generosidade artística.
São diversos os artistas que passaram durante a minha vida que causaram esse impacto - tanto quando os ouço, os assisto ou os estudo, mas, principalmente, quando posso trocar e criar junto, como é o caso com o Arnaldo.
Arnaldo é um artista que alcança de maneira muito elástica tanto a música e a literatura quanto às artes visuais e cênicas, e essa amplitude de possibilidades expressivas certamente é algo que eu observo com atenção e guardo com carinho para carregar comigo adiante.
E é um artista que não para de se reinventar, de testar novas possibilidades, tem a inquietude de não parar de procurar novas e mais novas formas de soar, mesmo já tendo uma carreira tão fortemente consolidada.
Nosso show e nosso disco, por exemplo, são um feliz resultado dessa inquietude, dessa abertura ao experimento e dessa generosidade artística.
O show conta com músicas dos álbuns "Lágrimas no mar" e "O real resiste". No caso das canções deste último, como foi o processo de arranjá-las para o formato voz e piano?
Na verdade, arranjar para piano e voz requer uma série de delicadezas, qualquer movimento feito por mim como arranjador e instrumentista tem grandes proporções no resultado final, então, primeiro de tudo, há de se ouvir as canções, escutar o que elas têm a dizer, respeitá-las em seus organismos e encontrar maneiras de vesti-las novamente - de maneira bem diferente, sim, porém igualmente adequada.
Uma das coisas mais prazerosas na formação do repertório desse show para mim foi arranjar as músicas mais pesadas, como “Pulso”, “Real resiste” e “Saia de mim”, onde eu não só tive que encontrar um lugar sonoro diferente para as músicas em si, mas também para a própria utilização do piano como instrumento, dado que eu tenho que chegar à potência de uma banda utilizando apenas um instrumento.
O show do “Lágrimas no mar” é todo costurado com momentos de leitura de poemas e textos do Arnaldo, e também foi muito especial criar formulações musicais para conduzir esses momentos - muitas vezes ruidosos e experimentais, mas por vezes também radicalmente singelos.
Uma das coisas mais prazerosas na formação do repertório desse show para mim foi arranjar as músicas mais pesadas, como “Pulso”, “Real resiste” e “Saia de mim”, onde eu não só tive que encontrar um lugar sonoro diferente para as músicas em si, mas também para a própria utilização do piano como instrumento, dado que eu tenho que chegar à potência de uma banda utilizando apenas um instrumento.
O show do “Lágrimas no mar” é todo costurado com momentos de leitura de poemas e textos do Arnaldo, e também foi muito especial criar formulações musicais para conduzir esses momentos - muitas vezes ruidosos e experimentais, mas por vezes também radicalmente singelos.
No show do álbum "Lágrimas no mar" há espaço para manifestações políticas? O que você acha desse tipo de manifestações em shows?
Não acredito que existam lugares onde manifestações políticas não caibam. E isso se torna ainda mais latente quando vivemos sob um governo de destruição e de barbárie - e, no nosso caso em particular, de ataque permanente à arte e à cultura.
Não é à toa que em vários shows de música por todo o Brasil o público e os artistas estejam sentindo a vontade de se manifestar: a tentativa de calar e de apagar apenas acentua a vontade de gritar e de existir.
Não é à toa que em vários shows de música por todo o Brasil o público e os artistas estejam sentindo a vontade de se manifestar: a tentativa de calar e de apagar apenas acentua a vontade de gritar e de existir.
"LÁGRIMAS NO MAR" - ARNALDO ANTUNES E VITOR ARAÚJO
Nesta sexta-feira (15/7), às 21h. Grande Teatro do Sesc Palladium, Rua Rio de Janeiro, 1046, Centro. Plateia II: R$ 80 e R$ 40 (meia). Plateia III: R$ 60 e R$ 30 (meia). Os ingressos para o setor Plateia I estão esgotados. À venda na bilheteria da casa e no site Sympla