Amadeo Luciano Lorenzato nasceu em Belo Horizonte, no primeiro dia do ano de 1900. Aos 20 anos, seus pais retornaram à Itália, levando-o junto. Lá foi um simples pintor de paredes, mas estudou pintura clássica e percorreu vários países, sempre atento às manifestações artísticas.
Na Europa conheceu a garçonete Emma Casprini e, contava ele, vendo-a subir numa escada para pegar um pão, apaixonou-se. Ela se tornou a companheira da vida inteira. Retornando ao Brasil, lançou sobre a ambiência da periferia de BH seu olhar estrangeiro de artista.
Já Rodrigo Moura cresceu em meio a livros, músicas e pinturas (seu pai foi marchand; seu avô, músico profissional). Quando exerceu o jornalismo como repórter de cultura, escreveu uma reportagem, em 2000, “Atualidade de Lorenzato “, em que mostrava como, no seu centenário de nascimento e quinto ano de sua morte, nada ou quase nada estava sendo preparado para homenagear o artista que teve uma repercussão imediata no meio das artes plásticas.
Após a atividade jornalística, Rodrigo Moura tornou-se profissional de museu e exerceu a função de curador no Museu da Pampulha, Inhotim e Masp. Atualmente, é curador-chefe do Museo del Barrio, em Nova York.
Ele já conhecia muitas pinturas de Lorenzato, de ver em algumas casas. Quando se aproximou de um grupo de artistas jovens que o cultuavam, como Patricia Leite, Cristiano Renó, Rivane Neuenschwander, conheceu mais obras e se apaixonou.
Ali começou uma pesquisa minuciosa e diversificada que durou 20 anos e resultou no livro “Lorenzato”, pela editora Ubu, em que utiliza linguagem jornalística, ficcional e ensaística, num crescendo musical. O livro, que terá lançamento com bate-papo com o autor neste sábado (16/7), em BH, é este encontro desses dois olhares, do artista sobre seu entorno e do crítico apaixonado sobre o próprio artista, sua vida e seu ambiente. É esse também o tema da entrevista a seguir com o curador.
Como foi a pesquisa? O que chamou mais a sua atenção em tantos anos de leitura e interpretação pela crítica das obras de Lorenzato?
Foram aí mais ou menos 20 anos, vendo o máximo que podia. Devo ter visto mais de mil pinturas, talvez 1.500, das quais catalogamos perto de 600 ao longo dos últimos quatro anos, resultando na seleção final de 240 no livro, que foram fotografadas para este fim. Passei esses anos visitando galerias, casas de leilão e coleções particulares sem parar.
Conversei com muita gente sobre o trabalho, apresentei-o a outras pessoas, o que me ajudou a compreendê-lo melhor também. Nesse intervalo, muita coisa aconteceu e, em algumas delas, eu tive participação direta, como uma mostra na galeria Bergamin & Gomide, em São Paulo, em 2014, para a qual atuei como consultor e escrevi um texto, e a doação de uma importante pintura sua para a coleção do MASP em 2016, que ajudei a intermediar quando era curador no museu.
Noutras, não tive qualquer envolvimento, mas acompanhei com interesse, como a mostra do Minas Tênis em 2018 e a primeira monografia dedicada a ele, publicada pela c/Arte há 10 anos. Nesse período, a posição do trabalho mudou. Muitas obras reapareceram e foi possível ver com clareza o corpo de pintura muito impressionante que esse artista nos legou.
O que mais me chama a atenção é essa versão da modernidade brasileira e popular que ele nos apresenta, cheia de contradições e fraturas, muito única mas, ao mesmo tempo, com conexões tão ricas com o modernismo canônico no Brasil e no exterior.
Conversei com muita gente sobre o trabalho, apresentei-o a outras pessoas, o que me ajudou a compreendê-lo melhor também. Nesse intervalo, muita coisa aconteceu e, em algumas delas, eu tive participação direta, como uma mostra na galeria Bergamin & Gomide, em São Paulo, em 2014, para a qual atuei como consultor e escrevi um texto, e a doação de uma importante pintura sua para a coleção do MASP em 2016, que ajudei a intermediar quando era curador no museu.
Noutras, não tive qualquer envolvimento, mas acompanhei com interesse, como a mostra do Minas Tênis em 2018 e a primeira monografia dedicada a ele, publicada pela c/Arte há 10 anos. Nesse período, a posição do trabalho mudou. Muitas obras reapareceram e foi possível ver com clareza o corpo de pintura muito impressionante que esse artista nos legou.
O que mais me chama a atenção é essa versão da modernidade brasileira e popular que ele nos apresenta, cheia de contradições e fraturas, muito única mas, ao mesmo tempo, com conexões tão ricas com o modernismo canônico no Brasil e no exterior.
A linguagem utilizada no livro é distante, convencional, mas também muito próxima, principalmente no último capítulo, um ensaio. Fale sobre a opção por esta linguagem, desta proximidade com o objeto, o artista. Como o livro foi pensado?
Interessante você perguntar sobre a minha escrita porque, embora haja uma pesquisa curatorial e um arcabouço museológico por trás desse projeto, que facilmente poderiam transformá-lo numa exposição retrospectiva de museu, o texto é essencialmente um texto de escritor de não ficção, voltado para um leitor não especializado.
Eu me debrucei sobre algumas entrevistas dispersas de Lorenzato como a fonte da mitologia focada na sua biografia, de fato formidável. Perto da morte, ele concedeu um depoimento monumental às professoras Thais Velloso Cougo Pimentel e Walquiria da Costa, da UFMG, que foi um verdadeiro roteiro biográfico para o meu texto. Também foi revelador ter acesso a documentos raros, como recortes e guardados pessoais do artista, e à sua própria casa-ateliê, que visitei pela primeira vez em 2000 e à qual voltei muitas vezes desde então, e seu entorno, na Zona Oeste de Belo Horizonte.
A divisão dos capítulos me parece um elemento fundamental, pois eu proponho uma espécie de decupagem da obra em torno de grandes grupos temáticos. Essa ideia de dividir, esmiuçar, dissecar a obra do Lorenzato encontra muita resistência, pois o modelo de recepção que vigora é o de um artista iluminado, libertário, anárquico e que, por isso, dispensaria esse esforço analítico.
É a tese da sua simplicidade singular, que me parece pouco produtiva e que não dá conta da sua complexidade. Assim, esse interesse iconográfico - de pegar a fundo as pinturas de favelas e relacioná-las com a sociedade de Belo Horizonte naquele momento da emergência de sua obra nos anos 1960 (“Matéria de construção”), ou pegar as paisagens e aproximá-las ao modelo minerador da economia do estado e seus impactos na paisagem da capital (“Leste-Oeste”), ou decifrar suas naturezas mortas pelo viés de uma sociedade de consumo tão atrofiada quanto a nossa (“Papel de embrulho”), para citar alguns dos capítulos – é uma das contribuições que espero que o livro possa dar. Pelo menos abrir caminhos.
Eu me debrucei sobre algumas entrevistas dispersas de Lorenzato como a fonte da mitologia focada na sua biografia, de fato formidável. Perto da morte, ele concedeu um depoimento monumental às professoras Thais Velloso Cougo Pimentel e Walquiria da Costa, da UFMG, que foi um verdadeiro roteiro biográfico para o meu texto. Também foi revelador ter acesso a documentos raros, como recortes e guardados pessoais do artista, e à sua própria casa-ateliê, que visitei pela primeira vez em 2000 e à qual voltei muitas vezes desde então, e seu entorno, na Zona Oeste de Belo Horizonte.
A divisão dos capítulos me parece um elemento fundamental, pois eu proponho uma espécie de decupagem da obra em torno de grandes grupos temáticos. Essa ideia de dividir, esmiuçar, dissecar a obra do Lorenzato encontra muita resistência, pois o modelo de recepção que vigora é o de um artista iluminado, libertário, anárquico e que, por isso, dispensaria esse esforço analítico.
É a tese da sua simplicidade singular, que me parece pouco produtiva e que não dá conta da sua complexidade. Assim, esse interesse iconográfico - de pegar a fundo as pinturas de favelas e relacioná-las com a sociedade de Belo Horizonte naquele momento da emergência de sua obra nos anos 1960 (“Matéria de construção”), ou pegar as paisagens e aproximá-las ao modelo minerador da economia do estado e seus impactos na paisagem da capital (“Leste-Oeste”), ou decifrar suas naturezas mortas pelo viés de uma sociedade de consumo tão atrofiada quanto a nossa (“Papel de embrulho”), para citar alguns dos capítulos – é uma das contribuições que espero que o livro possa dar. Pelo menos abrir caminhos.
Esse livro foi um convite da editora Ubu, e é muito importante destacar a minha parceria com as profissionais da casa, sobretudo com a Elaine Ramos, que assina o projeto gráfico, mas com quem eu desenvolvi a estrutura do livro praticamente a quatro mãos. Eu também trabalhei como uma editora de texto extraordinária, chamada Maria Emilia Bender, que teve uma escuta muito atenta à minha escrita e me ajudou a colocar o texto no mundo. A edição do livro deve muito às duas.
A formação de Lorenzato é não acadêmica, mas muito sofisticada, tendo tido contato com a obra de grandes mestres europeus enquanto morou na Europa. E aqui temos uma lacuna, mostrada no livro, talvez impossível de ser preenchida.
Eu não sei se podemos cravar que a formação do Lorenzato seja exatamente não acadêmica, pois ele estudou na Reale Accademia delle Arti, em Vicenza – embora ainda seja difícil precisar por quanto tempo e com quem. Mas certamente sua pintura é não acadêmica, o que importa muito mais.
E nessa ideia de formação entram muitas coisas: certamente seu contato com os mestres italianos do pré-Renascimento e do Renascimento, mas também com os mestres pintores decorativos de Belo Horizonte no início do século para os quais ele trabalhou como assistente. Seu trabalho como operário da construção civil tem uma importância enorme na sua gramática pictórica.
E nessa ideia de formação entram muitas coisas: certamente seu contato com os mestres italianos do pré-Renascimento e do Renascimento, mas também com os mestres pintores decorativos de Belo Horizonte no início do século para os quais ele trabalhou como assistente. Seu trabalho como operário da construção civil tem uma importância enorme na sua gramática pictórica.
Por muito tempo, na verdade, até hoje, Lorenzato foi considerado um artista "primitivo", "naïf”. Você propõe uma outra leitura da obra dele. Qual o lugar de Lorenzato na arte brasileira?
No livro eu tento deixar claro que essa escolha de rótulo - ingênuo e primitivo sendo os mais recorrentes e perversos – não é de forma nenhuma um acidente, mas sim o produto de uma mentalidade elitista nos meios artísticos, que relegaram e relegam artistas imigrantes, afrodescendentes, diaspóricos, não brancos, com formação não escolar e oriundos da classe trabalhadora a um lugar menor.
No caso de Lorenzato, esses apodos se dão logo de saída, nos anos 1960, e coincidem com a sua emergência num meio de arte e que tenta confiná-lo ao lugar de pintor-curiosidade. Ora, isso mais denota a pequeneza desse meio do que da obra em si, que tem o poder de comunicar e ativar significados para muito além desses círculos, como sua longevidade e alcance atual atestam. Por outro lado, desprezar inteiramente a participação de Lorenzato nesse processo seria ingenuidade nossa.
O fato é que, em grande medida, os rótulos lhe serviram de salvo conduto para fazer o que bem entendesse, como é evidente no desenvolvimento posterior de sua obra nas décadas posteriores, até seu apogeu nos anos 1990, com mais de 90 anos.
No caso de Lorenzato, esses apodos se dão logo de saída, nos anos 1960, e coincidem com a sua emergência num meio de arte e que tenta confiná-lo ao lugar de pintor-curiosidade. Ora, isso mais denota a pequeneza desse meio do que da obra em si, que tem o poder de comunicar e ativar significados para muito além desses círculos, como sua longevidade e alcance atual atestam. Por outro lado, desprezar inteiramente a participação de Lorenzato nesse processo seria ingenuidade nossa.
O fato é que, em grande medida, os rótulos lhe serviram de salvo conduto para fazer o que bem entendesse, como é evidente no desenvolvimento posterior de sua obra nas décadas posteriores, até seu apogeu nos anos 1990, com mais de 90 anos.
Você pensa em organizar algo sobre ele no Museo del Barrio, onde é curador?
No ano passado, nós incluímos uma pintura de favela na exposição “Popular painters and other visionaries”, em que analisamos o fenômeno da chamada pintura popular como intrínseco ao processo da modernidade em diferentes partes das Américas.
No Brasil, esse processo foi muito evidente nas obras de artistas como Djanira da Motta e Silva, José Antônio da Silva, Agostinho Batista de Freitas, Maria Auxiliadora da Silva, Chico da Silva e até um Volpi do começo.
Lorenzato, de certa maneira, foi por muitos anos um artista de artistas, mas agora sua obra começa a conquistar outros públicos, tanto no Brasil quanto no exterior. Minha aposta é que é apenas o começo dessa reavaliação.
No Brasil, esse processo foi muito evidente nas obras de artistas como Djanira da Motta e Silva, José Antônio da Silva, Agostinho Batista de Freitas, Maria Auxiliadora da Silva, Chico da Silva e até um Volpi do começo.
Lorenzato, de certa maneira, foi por muitos anos um artista de artistas, mas agora sua obra começa a conquistar outros públicos, tanto no Brasil quanto no exterior. Minha aposta é que é apenas o começo dessa reavaliação.
“LORENZATO”
Rodrigo Moura
Ubu Editora (320 págs.)
R$ 179
>> Lançamento neste sábado (16/7), às 11h, na Academia Mineira de Letras (Rua da Bahia, 1.466, Lourdes), com bate-papo entre o autor e o artista Ricardo Homen. Entrada franca.