Avignon (França) - Uma das mais importantes mostras teatrais do mundo, o Festival de Avignon, na Região da Provença, Alpes e Côte d’Azur, no Sul da França, chega à sua 76ª edição com números grandiosos e destaque para o Brasil. Aberto no último dia 7, o festival prossegue até 26/7.
Moradores e turistas vivem intensamente dois eventos que ocorrem simultaneamente. De um lado, o Festival de Avignon, que é subvencionado pelo governo, tem 46 peças programadas, mais de 400 encontros (entre debates, leituras e projeções) e público estimado pela cidade em 120 mil pessoas.
De outro, o Festival OFF, com 1.570 espetáculos, 1,3 mil companhias, expectativa de 300 mil espectadores, 33 mil representações em 24 dias, 1,7 milhão de ingressos vendidos e um trabalho de formiguinha dos 138 teatros envolvidos. Para o público que transita entre um e outro, pouco importam diferenças estruturais e administrativas.
Com números no superlativo, o OFF é a principal vitrine das companhias. Dele saem 25% da programação de espetáculos de toda a França. Por isso, ninguém economiza. A todo momento, os passantes são presenteados com extratos de espetáculos. Crianças e adultos flertam com os personagens, que não economizam em encantar.
A música está por todo canto, num clima festivo e saudável. É cartaz de peça espalhado por toda a cidade e, como parte do mar de gente, os artistas. Panfletos são distribuídos aos montes e, nesse papel, não tem atravessadores. Os próprios atores, se não estão no palco, estão chamando o público, vestidos com os trajes da cena ou à paisana.
Afinal, diante de tanta opção, é numa apresentação de segundos, franca e feita olho no olho que o encanto se produz ou não, numa mistura de propaganda e poder de convencimento, como explica a artista suíça Yoanna, que canta música francesa tocando seu acordeom seguida pela bateria.
MAGIA
“Somos obrigados a enontrar o público na rua, se não fizermos, perdemos algo. É parte da magia e talvez a pessoa que nos vê aqui irá nos ver no teatro”, afirma a cantora, que mora há 20 anos na França. Na rua, o acordeom vai junto. “A rua é gratuita, acessível a todos. E durante o festival podemos tocar a qualquer momento e em qualquer lugar”, diz ela.
E o Brasil não fica de fora. Este ano o país é representado por cinco grupos. Três são de Goiânia (GO), selecionados em edital do Fundo Estadual de Arte e Cultura. Previstas em 2020, as apresentações tiveram de esperar dois anos por causa da pandemia.
Pela primeira vez numa apresentação internacional, o Grupo Zabriskie aguça ainda mais o interesse do francês pela política brasileira com o espetáculo “O Brasil 2016 – A hora do espanto”, sobre a chegada da extrema-direita ao poder e a violência do sistema capitalista.
“Trazer esse espetáculo é um orgulho, é dizer que o teatro que se faz em Goiás reflete o que ocorre no Brasil hoje. Teatro é a reflexão do que se vive e aborda assuntos importantes, bandeiras para lutar pela democracia, por um país justo e humano”, afirma o ator, produtor e assistente de produção Alexandre Augusto.
A Cia Teatral Oops..! se apresenta com “O olho”, uma adaptação do conto “O coração revelador”, de Edgar Allan Poe. Um homem determinado a provar aos espectadores que a loucura se encontra ao lado deles conta em detalhes um crime que ele cometeu, com toda serenidade e lucidez, fazendo do espectador testemunha e cúmplice de sua história.
“Tenho introduzido palavras em francês no espetáculo e também dialogo muito com o público, jogo com ele para interagirmos de algum modo. Afinal, o teatro vai muito além da compreensão do texto”, diz o ator e diretor artístico da companhia, João Bosco Amaral. “Estamos sendo financiados por um fundo brasileiro e falar português é um ato político também”, completa.
Em “Lições de motim”, a Anthropos Companhia de Arte mostra como uma situação simples pode falar de um conjunto de situações de violência, muitas delas invisíveis. Na pela de uma professora de classe média aposentada, a atriz Renata Caetano é a radiografia de uma cidadã revoltada que não crê mais na justiça humana.
ÉTICA
As palavras saem como em coreografia, na sessão de um grande bolero. A professora tem a possibilidade de se vingar de um ladrão, que a impediu de seguir sua vida sossegada. “Não quero mais explicar, tudo está dito, agora é hora de tomar atitude. Numa espécie de interrogatório, se debate o conceito de justiça. O texto questiona, a partir de uma situação dramática, simples, real, se se deve obedecer a uma ética burguesa ou fazer justiça com as próprias mãos”, explica o diretor artístico do espetáculo, Constantino Isidoro.
“A sonoridade, as palavras que estamos vibrando aqui têm capacidade de ecoar no entendimento dos espectadores. E quem gosta de teatro tem que se aventurar a essa outra percepção.”
O Brasil é representado ainda pela companhia Quadrovivo, criada pelo ator Alexandre Babaioff para a turnê de Avignon, com a peça “Tom na fazenda”, baseada na obra “Tom à la farme”, do autor canadense Michel Marc Bouchard. E a Companhia Projeto comparece com “Uma mulher ao sol”, sobre a escritora mineira Maura Lopes Cançado (1929-1993), que passou longos períodos em hospitais psiquiátricos.
Copresidente do Festival OFF, Harold David lamenta a falta de representação maior do Brasil. “As companhias brasileiras que participam vêm por contra própria ou por meio de algum apoio de governos de estado. Queremos avançar nessa relação, proporcionar melhor acolhida e investimento dos grupos brasileiros e ter também uma reciprocidade, de maneira que as companhias francesas possam fazer o caminho inverso”, afirma.
“É também papel do festival facilitar o encontro e o intercâmbio entre os grupos. Apresentar-se no exterior possibilita se alimentar artisticamente, conhecer outros atores e culturas. A janela internacional é essencial para o OFF e estou contente de as primeiras trocas se darem com o Brasil.”
Leque de montagens tem opções para adultos e crianças
É teatro para todos os gostos, do clássico ao contemporâneo, para todas as idades, e o Brasil também presente no trabalho francês. Na peça musical infantil “Sábio como macaco”, a cumplicidade e as memórias de três amigas têm como cenário um mercado de pulgas e do mito dos três macacos sábios: o que não vê, o que não ouve e o que não fala o mal, ao cobrir os olhos, os ouvidos e a boca, respectivamente.
Objetos antigos e pitorescos fazem as vias de percussão, enquanto o violoncelo dá o tom a fragmentos de vida e às vozes do trio de atrizes, que põem em xeque a chave da felicidade sugerida pela sabedoria oriental. “Não é ignorando o mal que ele vai desaparecer”, dizem Serena Fisseau, Hélène Argo e Johanne Mathaly na peça. Elas cantam e encantam, com direito a músicas brasileiras, como “Canário do reino”, de Tim Maia.
“Sou atraída pelas canções do mundo. O espanhol e o português do Brasil me seduzem, porque, musicalmente, são línguas bem abertas que me fazem viajar”, afirma Serena. Hélène, parisiense cantora de samba, compartilha a mesma paixão. “Os três macacos são conhecidos no mundo todo, então, não quis reservar espaço só para a Indonésia, onde estão minhas origens, e a França. Amo fazer passarela de músicas que as crianças não conhecem, mas que as fazem viajar”, completa Serena, autora da peça.
Leonardo da Vinci anda pelas ruas de Avignon para divulgar “Sobre os passos de Leonardo da Vinci”, uma viagem no tempo feita pelos irmãos Lisa e Léo, que são transportados 500 anos atrás para falar com as crianças sobre o mestre da Renascença italiana e ensinar que o presente se alimenta da herança do passado e sua transmissão é essencial.
ESPERANÇA
“A época de Da Vinci foi muito complicada e especial na história, com guerras e fome, como a que estamos vivendo agora. É preciso dar esperança e mostrar que podemos fazer melhor, o que sempre buscou Da Vinci”, diz a autora da peça, Estelle Andrea.
Como não se encantar com “Galinha molhada”, que, de maneira sensível, trata do bullying na escola. Ou ainda com “Abelard”. Baseado numa revista em quadrinhos, conta a história de uma criança sem idade que, armado de inocência, encontra a hostilidade do mundo. “Não é porque as coisas são difíceis que não ousamos, é porque não ousamos que elas são difíceis.”
Assunto da vez, a onda migratória na Europa não fica de fora em “Uma certa queda para a crueldade”. Num humor ácido e feroz, cinco atores e um músico encenam a história de um imigrante africano acolhido por uma família burguesa de Paris e todas as contradições e intrigas reveladas com a chegada de Malik. O “politicamente correto” cede lugar às faces escondidas de nossas boas consciências, que logo deixam escapar preconceitos e incoerências.