O escritor português Valter Hugo Mãe é um apaixonado pelo Brasil e, desde que colocou os pés por aqui pela primeira vez, há mais de uma década, sentia o desejo de escrever um romance que se passasse no país.
Foi assim que o livro "As doenças do Brasil", publicado pela editora Biblioteca Azul em novembro de 2021, começou a nascer. O romance se passa na Amazônia e conta uma história de invasão e genocídio promovidos pelo europeu durante a colonização.
A história acompanha os personagens Honra e Meio da Noite. O primeiro é fruto de um estupro de um homem branco contra uma mulher indígena, e o segundo, um negro aprisionado pelos Abaetés que acaba unindo forças com os indígenas contra a ameaça dos brancos.
Para escrever a obra, Valter Hugo Mãe conviveu com comunidades indígenas durante momentos em que esteve na Amazônia, leu textos dos ianomâmis, como os livros de Davi Kopenawa, e lançou mão, principalmente, de sua capacidade de criar personagens profundos e estranhos. "O contato com os textos e as visitas que fiz à Amazônia foram fundamentais, mas foi muito importante partir para uma coisa mais solitária", ele afirma.
No Brasil para cumprir uma série de compromissos literários e divulgar seu livro mais recente, lançado em meio à pandemia, ele é o convidado da edição do Sempre um Papo desta segunda-feira (18/7), às 19h, no Grande Teatro do Palácio das Artes.
Além de participar de um debate, mediado pelo jornalista Afonso Borges, no qual irá responder perguntas da plateia, o autor autografa "As doenças do Brasil".
Antes de desembarcar em Belo Horizonte, Valter Hugo Mãe conversou, por telefone, com o Estado de Minas e deu detalhes sobre o processo de escrita do romance. Segundo ele, escrevê-lo foi ocupar "o lugar menos confortável", mas lançá-lo "é urgente", já que o livro joga luz no extermínio dos povos indígenas.
O autor também comenta o atual momento que o Brasil atravessa, com casos recentes que expõem a misoginia, a intolerância política e o racismo no país, e afirma que "política não pode ser desumanidade, agressão ou guerra". E também revela estar escrevendo um novo livro, que se passa na Ilha da Madeira, e deve ser lançado no ano que vem.
Nesta segunda (18/7), você lança em Belo Horizonte seu oitavo romance, "As doenças do Brasil", cuja história traz os povos indígenas no centro da narrativa, para falar da invasão e do genocídio causados pelos europeus. Por que você decidiu escrever uma história sob essa perspectiva?
Por vários e muitos motivos. Nos meus livros mais recentes, tenho tentado problematizar a minha posição. Não têm me interessado livros que venham muito diretamente ligados à minha cultura ou à minha identidade. Me interessam livros e ficções que tenham a ver com outro tipo de visão de mundo e cultura.
Isso aconteceu com a Islândia (no livro "A desumanização") e aconteceu com o Japão (em "Homens imprudentemente poéticos") e, ao acontecer com o Brasil, julgo que é talvez o lugar menos confortável. Ao invés de abordar o Brasil a partir de uma perspectiva muito branca, europeizada e burguesa, eu quis abordá-lo a partir de um ponto de vista dos povos originários, que não é absolutamente aquilo que aprendi na escola.
Essa narrativa é urgente nos dias de hoje. O ataque aos povos indígenas tem sido intensificado e o extermínio deles tem sido continuado e talvez até acelerado.
Isso aconteceu com a Islândia (no livro "A desumanização") e aconteceu com o Japão (em "Homens imprudentemente poéticos") e, ao acontecer com o Brasil, julgo que é talvez o lugar menos confortável. Ao invés de abordar o Brasil a partir de uma perspectiva muito branca, europeizada e burguesa, eu quis abordá-lo a partir de um ponto de vista dos povos originários, que não é absolutamente aquilo que aprendi na escola.
Essa narrativa é urgente nos dias de hoje. O ataque aos povos indígenas tem sido intensificado e o extermínio deles tem sido continuado e talvez até acelerado.
Quais foram as suas ferramentas para escrever uma história ambientada no Brasil?
Eu li o que devia e talvez o que não devia. Procurei, sobretudo, prestar atenção às vozes diretas de alguns povos indígenas e colhi muito de livros de Davi Kopenawa, alguns textos dos povos yanomami e também de Ailton Krenak.
Em dada altura, confesso que foi necessário deixar de ler porque eu precisava de um espaço vago na minha imaginação no qual eu pudesse imaginar e inventar.
O contato com esses textos e as visitas que eu fiz à Amazônia foram fundamentais, mas foi muito importante partir para uma coisa mais solitária, que fosse substancialmente minha e correspondesse à minha capacidade de inventar alguma coisa. Passou muito por aí. Por essa companhia inicial e por uma espécie de fuga para ficar sozinho.
Em dada altura, confesso que foi necessário deixar de ler porque eu precisava de um espaço vago na minha imaginação no qual eu pudesse imaginar e inventar.
O contato com esses textos e as visitas que eu fiz à Amazônia foram fundamentais, mas foi muito importante partir para uma coisa mais solitária, que fosse substancialmente minha e correspondesse à minha capacidade de inventar alguma coisa. Passou muito por aí. Por essa companhia inicial e por uma espécie de fuga para ficar sozinho.
Antes de lançar "As doenças do Brasil" você teve receio de os brasileiros criticarem o fato de um estrangeiro escrever uma história sobre o país?
Olha, eu já não tenho medo de muita coisa. E não é de hoje que eu lido com o preconceito que algumas pessoas de um determinado lugar podem ter ao receber o texto de um estrangeiro. Isso já havia acontecido um pouco com a Islândia e com o Japão. Por outro lado, quando as pessoas leem, elas entendem o esforço que foi feito para criar determinada história.
Eu não quero ocupar o lugar de fala de ninguém. Os meus livros são o meu lugar de escuta e são um exercício de empatia, de entender como é a cultura do outro. Eu já sabia que muita gente poderia estranhar o tema do livro ou o próprio título dele.
A passividade diante do genocídio dos povos indígenas é comum, infelizmente. Por isso eu entendo que muita gente não se sinta bem ao ver que um livro possa fazer uma defesa da dignidade dos povos indígenas, que têm sido tão perseguidos e massacrados.
Eu não quero ocupar o lugar de fala de ninguém. Os meus livros são o meu lugar de escuta e são um exercício de empatia, de entender como é a cultura do outro. Eu já sabia que muita gente poderia estranhar o tema do livro ou o próprio título dele.
A passividade diante do genocídio dos povos indígenas é comum, infelizmente. Por isso eu entendo que muita gente não se sinta bem ao ver que um livro possa fazer uma defesa da dignidade dos povos indígenas, que têm sido tão perseguidos e massacrados.
"As doenças do Brasil" é o seu primeiro romance em cinco anos. Por que você ficou esse tempo afastado do gênero?
Nunca deixei de escrever. Durante todo esse tempo eu fui escrevendo sempre. Esse livro me exigiu um pouco mais de tempo. É um livro que eu precisava conquistar não só o assunto, mas o linguajar. A linguagem nele é muito peculiar e especial. Precisei de várias tentativas.
O próprio livro me obrigou a demorar um pouco mais. Não foi uma decisão minha, portanto, passar um tempo de férias. Não estive de férias, na verdade, estive em trabalhos redobrados.
O próprio livro me obrigou a demorar um pouco mais. Não foi uma decisão minha, portanto, passar um tempo de férias. Não estive de férias, na verdade, estive em trabalhos redobrados.
Estamos passando por um momento delicado no Brasil, com casos recentes que expõem a misoginia, a intolerância política e o racismo. Como você enxerga esse período?
Eu enxergo como um tempo que tem que resultar numa mudança. Eu acho que as pessoas precisam se lembrar que, acima de tudo, política não pode ser desumanidade, agressão ou guerra. Político, mesmo que burro, não pode excluir.
Isso não cabe na cabeça de ninguém. É muito bizarro que, de repente, estamos debatendo com pessoas que deminuem as mulheres, os negros, os homossexuais...
No fundo, diminui toda a gente. Quem sobra depois de tantos excluídos? Não sobra ninguém. E os que sobram tem que ser muito imbecis. Eu não gostaria de participar de um coletivo que fosse o resultado de tanta exclusão para sobrar só eu.
Ou então nem eu sobraria porque eu próprio caminharia com os meus próprios pés para fora desse grupo. Eu espero que o Brasil e o mundo voltem às narrativas de integração humanística e que o ser humano seja colocado no centro das questões com suas peculiaridades, estranhezas e até com suas falhas. Nós não temos de ser eliminados por falhar.
Isso não cabe na cabeça de ninguém. É muito bizarro que, de repente, estamos debatendo com pessoas que deminuem as mulheres, os negros, os homossexuais...
No fundo, diminui toda a gente. Quem sobra depois de tantos excluídos? Não sobra ninguém. E os que sobram tem que ser muito imbecis. Eu não gostaria de participar de um coletivo que fosse o resultado de tanta exclusão para sobrar só eu.
Ou então nem eu sobraria porque eu próprio caminharia com os meus próprios pés para fora desse grupo. Eu espero que o Brasil e o mundo voltem às narrativas de integração humanística e que o ser humano seja colocado no centro das questões com suas peculiaridades, estranhezas e até com suas falhas. Nós não temos de ser eliminados por falhar.
Você foi um dos autores convidados da 26ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, realizada entre os dias 2 e 10 de julho passado, na capital paulista. Como foi a experiência de participar do evento?
Foi lindo. Um encontro com um oceano de gente e um pouco tumultuado. Acho que eles admitiram tanta gente que muitas pessoas não devem nem ter tido a oportunidade de comprar livros porque as filas eram gigantes. Enquanto autor, foi gratificante ver tantas pessoas, fazer várias falas e ver a plateia sempre cheia.
É uma coisa muito concreta ver tanta gente entrando numa Bienal, querendo comprar livros. Sempre se fala da crise do livro, da falta de leitores, mas a prova está aí: gente querendo ler existe. Temos todos de continuar a lutar por isso e acreditar que o conhecimento e o texto nos trazem liberdade. O livro e o pensamento livre ainda vão nos ajudar em muitas situações.
É uma coisa muito concreta ver tanta gente entrando numa Bienal, querendo comprar livros. Sempre se fala da crise do livro, da falta de leitores, mas a prova está aí: gente querendo ler existe. Temos todos de continuar a lutar por isso e acreditar que o conhecimento e o texto nos trazem liberdade. O livro e o pensamento livre ainda vão nos ajudar em muitas situações.
Foi a sua primeira Bienal?
Eu já tinha estado em alguns eventos desse tipo. Aqui no Brasil, inclusive, já tinha estado em algumas bienais, mas não necessariamente na de São Paulo. Das de grandes proporções, estive nas do México e da Colômbia.
Mas a Bienal de São Paulo talvez tenha sido a que eu tenha visto com mais gente ao mesmo tempo dentro do mesmo recinto. Nunca vi um evento de livros onde quase não se pudesse circular por conta da quantidade de gente que estava nos corredores.
Mas a Bienal de São Paulo talvez tenha sido a que eu tenha visto com mais gente ao mesmo tempo dentro do mesmo recinto. Nunca vi um evento de livros onde quase não se pudesse circular por conta da quantidade de gente que estava nos corredores.
Por que você acha que seus livros e suas histórias são tão bem recebidos pelos leitores brasileiros?
Eu não sei. As pessoas gostam da poesia dos meus livros. Gostam do trabalho de linguagem, do desafio de encontrar expressões que não são tão comuns e não correspondem à normalidade.
Gostam também da coragem de alguns personagens e da estranheza que eles podem causar. E eu creio que passa um pouco por aí. E também porque elas se identificam comigo. Por eu próprio acreditar numa cultura de aceitação e entendimento. Nos meus livros, existe uma defesa da paz e do respeito.
Gostam também da coragem de alguns personagens e da estranheza que eles podem causar. E eu creio que passa um pouco por aí. E também porque elas se identificam comigo. Por eu próprio acreditar numa cultura de aceitação e entendimento. Nos meus livros, existe uma defesa da paz e do respeito.
Você está escrevendo um novo livro?
Estou trabalhando há alguns anos em um novo romance. Ele inclusive é anterior ao "As doenças do Brasil". Se passa em uma quarta ilha depois da Islândia, do Japão e das ilhas do Abaeté.
É uma história que se passa na Ilha da Madeira e traz à tona um conjunto novo de personagens bem estranhos e um pouco rejeitados e inexplicáveis. É o que tem me ocupado. Espero terminá-lo ainda neste ano para ser lançado no próximo.
É uma história que se passa na Ilha da Madeira e traz à tona um conjunto novo de personagens bem estranhos e um pouco rejeitados e inexplicáveis. É o que tem me ocupado. Espero terminá-lo ainda neste ano para ser lançado no próximo.
"AS DOENÇAS DO BRASIL"
• De Valter Hugo Mãe
• Editora Biblioteca Azul (208 págs.)
• R$ 64,90
• Lançamento nesta segunda-feira (18/7), às 19h, no projeto Sempre um Papo, no Grande Teatro do Palácio das Artes, Av. Afonso Pena, 1.537, Centro. Entrada franca, por ordem de chegada, sem necessidade de retirada de ingressos.