“Me senti sendo arrastada para a calçada. Empurrada e esmurrada, um pé sobre minha cabeça, um chute no estômago. Policiais por toda parte. Um deles com a arma apontada para minha cabeça”. É com o relato em forma de flashes do que aconteceu no dia 2 de maio de 1973, quando o policial Werner Foerster foi morto após uma troca de tiros em uma blitz montada em uma rodovia de Nova Jersey, que Assata Shakur inicia sua autobiografia.
Publicada em 1988 nos Estados Unidos, a obra chega agora ao Brasil, em uma edição da Pallas, amplificando e aprofundando o debate sobre o racismo ao longo das últimas décadas. Nascida JoAnne Deborah Chesymard, no Queens, condado de Nova York, há 75 anos, completados no último sábado (16/7), Assata está na lista de “terroristas mais procurados” pelo FBI, o serviço de inteligência dos EUA. A informação que se tem é que ela vive em Cuba desde 1980.
No início dos anos 70, Assata já era um nome de proa nos movimentos radicais antirracistas nos EUA, ligada aos Panteras Negras e ao Exército de Libertação Negra, até ser condenada à prisão perpétua pela morte de Foerster – mesmo sem que vestígios de pólvora tenham sido encontrados em seus dedos. Há quatro décadas, portanto, Assata é considerada foragida, e o FBI oferece uma recompensa de U$ 2 milhões por sua captura.
Entre abril de 1971 e maio de 1973, ela foi acusada por diversos crimes, de assalto à mão armada em um hotel a sequestro e assassinato de um traficante de drogas. Alguns desses processos foram arquivados e, em outros, ela foi absolvida, até que a condenação veio pela morte do policial.
Lançamento no Brasil
Assata foi para a prisão em 1977 e protagonizou uma fuga cinematográfica em 1979, quando foi libertada por três homens negros, que invadiram a cadeia armados com este propósito. Tudo isso está contado em detalhes no livro, cujo lançamento no Brasil é marcado por dois eventos: um no Rio de Janeiro, realizado na última quinta-feira (14/7), e outro em São Paulo, previsto para a próxima quarta-feira (20/7).
Tais eventos contam com as presenças da escritora Cidinha da Silva; da cantora, atriz e ativista Preta Ferreira; da médica, ativista, escritora e diretora executiva da Anistia Internacional Brasil Jurema Werneck e da escritora e historiadora Ynaê Lopes dos Santos, que assina a apresentação da edição brasileira de “Assata: uma autobiografia”.
Num determinado trecho dessa introdução, ela escreve que o livro é a materialização do conceito de “escrevivência” cunhado por Conceição Evaristo. Em outro, Ynaê diz que “a autobiografia de Assata Shakur chega ao Brasil num momento em que sua vida e sua experiência são história e também possibilidade”.
Possibilidade de ação
Ela destaca que a ativista e revolucionária é uma das personagens fundamentais da luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos, e que esta é, na verdade, uma luta que transcende as fronteiras do país e atinge uma escala global.
“A vida de Assata é uma forma de contar a história. E ela é uma possibilidade de ação contra o racismo. É uma mulher que tomou medidas tidas como radicais, mas tem uma pauta muito bem definida para o desmonte do sistema racista nos Estados Unidos.”
Ela observa que, nos últimos 20 ou 30 anos, a partir da publicação da autobiografia, o encarceramento em massa de negros nos EUA vem sendo denunciado como fruto de uma política pública. “Criam estratagemas que levam à segregação dos não brancos”, diz a historiadora.
O que há de mais revelador no livro, segundo Ynaê, é o fato de ele trazer a história de uma mulher tida como inimiga pública número um dos EUA contada por ela própria. “A gente percebe o quanto a história pode ser forjada, a depender de quem conta. Também conseguimos entender como a própria estrutura estadunidense criou as condições para que Assata existisse, sobretudo pelas múltiplas violências e exclusões que ela sofreu”, aponta.
"Elas (as vozes negras) deixam de ser objeto de estudo e passam a ser as que estudam, as pessoas que narram, que analisam. No caso da autobiografia, temos uma outra versão da história dos Estados Unidos, contada por uma negra, ativista, que teve que sair do próprio país para continuar viva e em liberdade"
Ynaê Lopes dos Santos, escritora e historiadora
Vozes negras
Ela considera fundamental que esse livro esteja disponível agora em uma edição brasileira para que se comece a perceber a história a partir das vozes negras. “Elas deixam de ser objeto de estudo e passam a ser as que estudam, as pessoas que narram, que analisam. No caso da autobiografia, temos uma outra versão da história dos Estados Unidos, contada por uma negra, ativista, que teve que sair do próprio país para continuar viva e em liberdade”, diz.
Para Ynaê, o que mais chama a atenção na escrita de Assata é a forma como ela constrói a narrativa, sem se ater à linearidade dos acontecimentos e jogando luz sobre momentos distintos, entrecruzando passado e presente. A autora da apresentação considera que isso torna a leitura muito presente e pulsante, e que a sensação é de que se está diante de um roteiro de filme ou série.
Atualidade da obra
A defasagem de 34 anos entre a publicação original nos EUA e sua chegada ao Brasil não compromete a atualidade da obra, tampouco exige uma contextualização mais estrita, segundo Ynaê. Ela diz que a forma como o livro foi escrito explicita o caráter estrutural do racismo nos EUA e, inclusive, antevê conquistas e retrocessos.
“É uma obra que nos ajuda a entender o racismo nos Estados Unidos no século 20 e no século 21, que permite compreender essas idas e vindas, as ações mais progressistas, como a eleição de Barack Obama, que, no entanto, são permeadas por casos impactantes, como os que geraram o (movimento) Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, como é chamado no Brasil). Isso tudo mostra a atualidade do que ela conta”, ressalta.
Cidinha da Silva também não considera que o lançamento no Brasil seja extemporâneo. “É de praxe no Brasil que leiamos com muito atraso reflexões políticas e filosóficas que possam abalar as estruturas de um país racista como o nosso; é assim, por exemplo, com o pensamento de James Baldwin e Toni Morrison, entre outros. Demoramos muito a publicá-los. A mensagem política de Assata é atemporal, assim como sua luta contra o capitalismo e o racismo articulados também”, diz.
Ela acredita que o livro pode contribuir para fortalecer o campo progressista e antirracista no Brasil, e que dialoga diretamente com a Coalização Negra por Direitos – movimento que congrega mais de 250 organizações em todo o país. “A leitura arguta de Assata sobre a operacionalidade do racismo no interior do sistema capitalista, ajudando a mantê-lo, é de grande importância para que se firmem alguns entendimentos”, destaca.
Cenário de retrocessos
Ynaê dos Santos observa que o Brasil assistiu a avanços inegáveis ao longo dos últimos 20 anos no que diz respeito ao combate ao racismo, mas pondera que o atual cenário político e social do país evidencia retrocessos. “Temos o acúmulo das lutas dos movimentos negros”, diz, citando desde a inserção da história africana na grade curricular de ensino até a criação do sistema de cotas.
“Tivemos uma ampliação do espectro de intelectuais, pesquisadores e influenciadores negros, mas não acho que esse aumento de representatividade seja um índice de desestruturação do racismo. Os negros têm uma presença maior nas mídias, mas ainda se observa uma ausência sistemática nos postos de poder. Não dá para confundir aumento de representatividade com ganhos efetivos”, aponta.
“Precisamos de mudanças estruturais com vistas a conquistas significativas, que não vão se perder em função de um governo, por exemplo. É preciso entender essa questão como espinha dorsal da sociedade brasileira, caso contrário, a gente segue vivendo essa dinâmica de avanço e retrocesso. Não haverá democracia plena enquanto o racismo tiver o tamanho que tem no Brasil”, acrescenta.
Luta concreta
Ynaê diz que tentou fazer do texto introdutório de “Assata: uma autobiografia” um estímulo para que se possa sair do campo retórico e transformar a luta antirracista em algo mais concreto. “Sei que isso pode ser visto pelas alas conservadoras como uma declaração de guerra. Assata até hoje é vista como uma inimiga pública nos Estados Unidos. As pessoas que se interessarem em ler o livro vão compreender a radicalidade que ela traz dentro da história que conta”, destaca.
Ela salienta que se trata, no entanto, de uma radicalidade não obtusa. Assata se permite, por exemplo, lançar um olhar muitas vezes crítico sobre os movimentos que integrou – tanto o Exército de Libertação Negra quanto os Panteras Negras.
Ynaê destaca que esse olhar se relaciona com uma perspectiva de gênero. Ela diz que essa é uma dimensão que tem ganhado peso ao longo dos últimos anos, com a teoria interseccional, que contribui para se pensar nas diversas formas de exclusão.
“Por outro lado, a história que ela conta também contribui para uma humanização dos membros desses movimentos, que foram demonizados, mas que, às vezes, também podem aparecer como heróis românticos para muitos militantes. O livro de Assata traz à tona a dimensão humana dos Panteras Negras e dos integrantes do Exército de Libertação Negra, que foram fundamentais pela luta antirracista nos EUA”, ressalta.
“ASSATA: UMA AUTOBIOGRAFIA”
.Assata Shakur
.Editora Pallas (472 págs.)
.R$ 98