Quatro anos após o álbum "Estação cidade baixa" (2018), o cantor e compositor Nobat está de volta com um novo trabalho de estúdio. "Mestiço", que chega às plataformas digitais nesta quinta-feira (21/7), quarto disco do artista mineiro, é fruto de um mergulho profundo na música brasileira e conta com a participação de Elza Soares (1937-2022) na faixa "Me deixa sambar".
"Esse trabalho resulta de uma pesquisa que já realizo há algum tempo sobre arte e cultura brasileiras. A música brasileira é a minha maior referência, desde a infância, quando aprendi o meu primeiro instrumento, o violão. E ela sempre tangenciou os meus trabalhos. Mas desta vez é diferente, ela passa a ocupar um lugar central. Ela saiu dos arredores e norteia todas as escolhas. E eu me sinto muito à vontade para defendê-la", afirma o músico.
Concebido entre 2020 e 2022, o registro envolveu mais de 20 músicos e musicistas e foi gravado entre Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo. A produção é assinada por Barral Lima e, por mais caudaloso que seja o caldeirão de referências que ajudaram a formar as músicas, o trabalho é norteado pelo samba e, como o próprio título sugere, o gênero não aparece de forma pura.
"O disco é mestiço como é a música brasileira por si só. Ele tem o samba na dianteira da investigação sonora, mas traz elementos de maracatu, carimbó, congado e baião. E isso tudo em conversa com outros estilos, como o jazz, o hip hop e a música eletrônica. É um disco esteticamente mestiço", afirma o artista.
Referências
No álbum, Nobat também celebra a música brasileira ao reverenciar cantores e compositores como Cartola (1908-1980), Clara Nunes (1942-1983) e Tom Jobim (1927-1994). A faixa-título, que também é responsável por abrir o disco, traz um sample da música "Canto das três raças", de Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte, eternizada na voz de Clara Nunes. "Beira do mar" conta com uma citação de "Água de beber", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. "Preciso me encontrar", de Cartola, está sampleada em "Cadência das horas".
Mas a grande homenageada do álbum é mesmo Elza Soares, que faleceu aos 91 anos, em janeiro deste ano. A voz da artista, gravada em março de 2021, está presente em "Me deixa sambar", faixa que também conta com a participação do rapper BNegão. Lançada como segundo single, em abril passado, ela celebra o próprio legado de Elza e foi por isso que Nobat decidiu convidá-la para gravar, o que, segundo ele, "foi uma saga".
"A música brasileira é a minha maior referência, desde a infância, quando aprendi o meu primeiro instrumento, o violão. E ela sempre tangenciou os meus trabalhos. Mas desta vez é diferente, ela passa a ocupar um lugar central. Ela saiu dos arredores e norteia todas as escolhas. E eu me sinto muito à vontade para defendê-la"
Nobat, cantor e compositor
"Ela é uma das maiores artistas do mundo e a equipe dela cuidava de tudo com muito carinho. Na primeira tentativa, ainda em 2020, fui informado de que ela estava com milhões de projetos paralisados por conta da pandemia. Então seria muito difícil conseguir que ela gravasse. No entanto, no final do ano, rolou um convite do Estado de Minas que colaborou para que a parceria acontecesse", ele conta.
Convite
Em dezembro daquele ano, Nobat foi convidado pelo Estado de Minas para listar as 10 melhores canções dos últimos 10 anos, junto com outros músicos e críticos. No topo da lista criada pelo artista estava "Mulher do fim do mundo", de Alice Coutinho e Romulo Fróes, lançada por Elza em 2015.
Para justificar a escolha, o artista escreveu: "Elza superou o tempo. Elza é o próprio tempo em si. E, adaptando a fala de Nélida Piñon, ao se referir a Machado de Assis: 'Se o Brasil produziu alguém da grandeza de Elza, este país não tem o direito de fracassar'".
"De alguma forma, esse texto chegou até ela e a equipe dela e eles ficaram sensibilizados. E aconteceu o que eu esperava, que era ela somente ouvir a composição. Eu sabia que, se ela a ouvisse, iria decidir, mesmo que fosse não. A partir daí, a música chegou até ela, que ouviu e adorou", ele recorda.
"Pesquisar sobre a arte e a cultura brasileiras me deixou fascinado por um Brasil que poderia ter sido e, na verdade, nunca foi. Um Brasil que reconhece sua ancestralidade e valoriza a contribuição estrutural dos povos negros e indígenas. Um Brasil que entende que nós somos um povo que não tem direito de negar a diversidade"
Nobat, cantor e compositor
Segundo o artista, desde que a canção nasceu, ele já tinha Elza Soares em mente. Para Nobat, a composição celebra a carreira da artista, principalmente entre as décadas de 1960 e 1970, quando ela se dedicava mais propriamente ao samba. "Ela ouviu, entendeu a mensagem e deu o sim. Receber um 'sim' de Elza Soares foi um dos presentes mais incríveis que já recebi na minha vida", diz.
Ligação
Apesar de terem registrado a parceria, Elza e Nobat nunca se encontraram pessoalmente. A gravação presencial estava marcada para março de 2021, mas, diante do aumento de casos da COVID-19, ficou decidido que tudo seria feito à distância. No entanto, o artista mineiro conta que recebeu uma ligação inesperada da parceira, logo depois que ela finalizou a gravação.
"Meu celular tocou. Era uma ligação do Rio de Janeiro. E era a Elza Soares. Fiquei completamente atônito. Ela me ligou para agradecer, e a gente ficou um tempão no telefone, falando sobre samba e sobre o Brasil. Foi o único contato que eu tive com ela, no final das contas. Não tive o prazer de conhecê-la pessoalmente", ele lamenta.
Elza Soares é a presença mais célebre do trabalho, mas "Mestiço" também conta com outras participações. "Aqueles homens", o terceiro e último single antes do lançamento do álbum, tem a presença da cantora mineira Mariana Cavanellas. Já "Fortaleza" é fruto da parceria com o bloco de carnaval Então, Brilha.! "Beira mar", um dos destaques do registro, traz Nobat junto de sua esposa, a cantora e compositora mineira Lulis.
Climas
O trabalho é um registro de climas. Enquanto "Menina erê", o primeiro single, lançado em fevereiro, é uma música animada, que cresce ao longo da execução, "Quarta-feira de cinzas" explora um lado introspectivo do artista. Na derradeir, "Montanha russa", construída por percussão e voz distorcida, ele põe o dedo na ferida e conclui: "A vida basta/ O samba vale a pena".
"Pesquisar sobre a arte e a cultura brasileiras me deixou fascinado por um Brasil que poderia ter sido e, na verdade, nunca foi. Um Brasil que reconhece sua ancestralidade e valoriza a contribuição estrutural dos povos negros e indígenas. Um Brasil que entende que nós somos um povo que não tem direito de negar a diversidade", afirma o artista.
Segundo ele, o resultado da última eleição presidencial de 2018 foi decisivo para definir como seria a abordagem do álbum. "No auge da minha pesquisa, houve a ascensão da horda conservadora e intolerante, alcançando altos lugares de poder e desmentindo esse Brasil idealizado que é possível. Foi muito traumático", comenta.
"Eu fiz esse álbum para salvar um Brasil que eu acredito, boto fé de verdade. E para transmitir uma energia boa para as pessoas que estavam ao meu redor e estão muito abaladas por tudo o que está acontecendo”, afirma Nobat.
“Nos últimos anos, o Brasil está vivendo uma viagem de ácido estragado. Agora, estamos com aquela sensação de que a onda errada está passando. Mas é importante ter consciência de que as coisas não vão mudar tão rápido como a gente gostaria que fosse. Mas dá esperança e alivia pensar que em breve estaremos livres", ele afirma.
Com o disco novo na praça, Nobat agora se prepara para os shows de lançamento. O artista faz uma apresentação gratuita no próximo dia 30, em Ouro Preto, na Praça Tiradentes, dentro da programação do Marte Festival.
Em BH, ele se apresenta n'A Autêntica, no dia 13 de agosto, junto com a cantora e compositora paulista Tulipa Ruiz. Os ingressos, que vão de R$ 40 a R$ 60, já estão à venda no site da casa de shows.
"MESTIÇO"
• Nobat
• Under Discos (10 faixas)
• Disponível nas plataformas digitais