Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Novo livro de Frei Betto tematiza massacre indígena

O novo livro de Frei Betto, o romance histórico “Tom vermelho do verde”, que chega às livrarias físicas e virtuais no final deste mês, começou a ser escrito há cinco anos, e seu foco recai sobre fatos ocorridos na década de 1970, em torno da construção da rodovia BR-174, que cruza a Floresta Amazônica. A narrativa, no entanto, reverbera de modo impactante nos dias atuais.



A trama é centrada no drama vivido pelo povo indígena Waimiri-Atroari, a partir do momento em que o governo militar brasileiro deu início à construção da BR-174. Em nome de um suposto progresso, com vistas à exploração dos recursos naturais e a implantação de iniciativas agropecuárias, o coronel Luiz Fontoura, um dos personagens do livro, tem como maior ambição “retalhar a selva de estradas”.

Baseado em eventos históricos, “Tom vermelho do verde” relata como os Waimiri-Atroari foram alvos de diversas invasões. Seus integrantes foram encurralados, aprisionados, escravizados, queimados, assassinados. Frei Betto diz que a motivação para escrever o livro foi o desejo de revelar uma página da história relacionada à ditadura militar que não foi suficientemente dada a conhecer: a forma como ela reprimiu os povos indígenas e provocou verdadeiros massacres no Amazonas.

O autor observa que, por uma dramática coincidência, a obra vem à luz no momento em que o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips no Vale do Javari, no Oeste do estado do Amazonas, repercute mundialmente. Um grupo de 23 congressistas dos Estados Unidos acaba de escrever uma carta à Secretaria de Estado do país (órgão equivalente ao Ministério de Relações Exteriores) para pedir, entre outras ações, uma investigação imparcial e completa do caso e encontros com representantes dos povos indígenas.





Ao mesmo tempo, garimpeiros, latifundiários, madeireiros e mineradoras seguem invadindo terras indígenas de maneira indiscriminada, conforme aponta Frei Betto. “Esse livro é um projeto que eu acalentava há 10 anos; comecei a trabalhar nele há cinco, movido por essa vontade de revelar o que houve em 1970 e que, infelizmente, parece estar se repetindo agora, de outra forma, envolvendo outros mecanismos, mas com os mesmos efeitos devastadores”, diz.
 
Indígenas da tribo waimiri-atroari comemoram, em 2003, o nascimento do milésimo integrante da tribo, que esteve sob risco de extinção (foto: Euzivaldo Queiroz / A Crítica / Agência O Globo)

Drama terrível 

Ele pontua que “Tom vermelho do verde” começou a ser escrito antes das eleições de 2018, que levaram Jair Bolsonaro à presidência e, assim, degeneraram na atual situação dos povos originários.  “Eu não esperava que Bolsonaro ganhasse e não podia imaginar, portanto, que fôssemos estar assistindo, atualmente, a esse drama terrível que os povos indígenas estão passando. Há cinco anos já tinha ocorrido o golpe parlamentar que tirou Dilma Rousseff da presidência, mas eu esperava sinceramente que Haddad ganhasse as eleições”, diz.

Ele destaca que tinha em mente apenas o fato de que essa página terrível de violência contra os indígenas durante a ditadura militar nos anos 1970 sempre foi muito pouco falada, com apenas alguns escritores e jornalistas levantando a questão pontualmente ao longo das últimas décadas. “A forma como o povo Waimiri-Atroari foi vítima de um massacre é paradigmática. Quase 3 mil indivíduos desapareceram num período muito curto de tempo”, diz.





O autor ressalta que o livro aborda a questão socioambiental para além do drama vivido pelos Waimiri-Atroari. “Tom vermelho do verde” abrange vários aspectos do que ocorreu na Amazônia, com a chegada e a invasão das supostas missões protestantes, das madeireiras e das mineradoras, segundo Frei Betto.

Nome aos bois 

A narrativa chega até 2021, quando o coronel Fontoura, nonagenário, visita o major reformado Paulo Cordeiro, presidente da Holos Global Investimentos, representante de empresas estrangeiras interessadas em explorar as riquezas da Amazônia. Frei Betto usa a conversa entre eles para dar nome aos bois: BlackRock, Citigroup, JP Morgan Chase, Vanguard, Bank of America e Dimensional Fund Advisors, que, juntas, investiram na região, apenas nos últimos três anos, U$ 18 bilhões.

O diálogo explicita, ainda, que tais investimentos não são feitos de forma direta, mas por meio de empresas que atuam na Amazônia, como as mineradoras Vale, Potássio do Brasil, Anglo American e Belo Sun; as do agronegócio, como Cargill, JBS e Cosan/Raízen; e empresas da área energética, como a Energisa Mato Grosso, Equatorial Energia Maranhão, Bom Futuro Energia e Eletronorte.





Frei Betto diz que demorou cinco anos para escrever “Tom vermelho do verde” não porque tenha havido no processo alguma interrupção ou necessidade de revisão à luz de fatos novos, mas por uma questão de cautela. “Não só revejo muitas vezes depois de escrito como também envio para pessoas que dominam o tema, indigenistas, historiadores, etnólogos, antropólogos, estudiosos do tema”, diz.

Colaboradores 

Ao final do livro, ele lista alguns desses colaboradores, como o antropólogo Stephen Grant Baines, professor da Universidade de Brasília; o pesquisador da história indígena Benedito Prezia; a escritora e tradutora Bhuvi Libanio; e principalmente o indigenista, filósofo, teólogo e ativista social Egydio Schwade, a quem “Tom vermelho do verde” é dedicado.

Frei Betto destaca que sua principal fonte de pesquisa para reconstruir o drama dos Waimiri-Atroari foram os documentos fornecidos por Schwade. “Ele mora no território deles e dedica a vida à causa indígena. Egydio foi quem me deu mais material para a escrita do livro. Ele tem uma documentação profunda e vasta a respeito. Foi ele, inclusive, quem dicionarizou o idioma dos Waimiri”, sublinha.





Em texto enviado ao autor em dezembro de 2020, Schwade escreve: “A história do desaparecimento de mais de 2 mil Waimiri-Atroari em menos de cinco anos ainda é um mistério para a sociedade brasileira. Além dos Kinja (palavra que para este povo indígena significa “gente de verdade”) sobreviventes, só elementos do Comando Militar da Amazônia e da Funai são detentores de informações sobre os acontecimentos no período em que essa tragédia humana aconteceu”.

Importância estratégica 

Com base nas pesquisas que realizou, Frei Betto expõe, no livro, que a ditadura militar considerava de importância estratégica a abertura da BR-174. O extremo Norte do subcontinente sul-americano se encontrava ameaçado por conflitos armados. Venezuela e Guiana disputavam, havia séculos, a região de Essequibo, área de 130 mil km², rica em recursos naturais.

A CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA) operava por trás, interessada em derrubar o governo esquerdista do primeiro-ministro Forbes Burnham, que chegara ao poder na Guiana em 1964. Caso o conflito se agravasse, o Brasil deveria intervir para se consolidar como potência hegemônica regional. No entanto, conforme observa o autor, a operação poderia ser prejudicada pela falta de rodovias, o que dificultaria a mobilização das forças terrestres.





Soma-se à colaboração externa para a feitura do livro o “profundo conhecimento da cultura indígena” de Frei Betto, conforme destaca o texto de orelha da obra. “Eu sempre tive muito contato com povos indígenas; em várias ocasiões estive com eles, em viagens ao Amazonas, ao Acre e assessorando encontros de comunidades eclesiais de base nos quais eles estavam presentes. Também pelo fato de o nosso convento em São Paulo ter abrigado a União das Nações Indígenas. Eles mantiveram a sede lá durante um tempo”, diz o frade dominicano.

Situação atual 

Ele observa que pouco se sabe da situação atual dos Waimiri-Atroari, porque seu território está confinado pelo Programa Waimiri, desenvolvido por empresas que exploram suas terras, como a Usina Hidrelétrica Balbina e a mineradora Paranapanema. “Ninguém consegue entrar lá, é difícil saber como estão, porque o acesso ao território não é permitido. O que sabemos é que linhas de transmissão para ligar Roraima com o resto da conexão elétrica do Brasil vão passar pela terra deles, o que também vai ter um impacto grande, vai criar muitos problemas”, destaca.

Frei Betto considera que os povos indígenas, no geral, continuam sofrendo, nos dias atuais, agressões semelhantes às que foram perpetradas contra os Waimiri-Atroari a partir de 1970. “Elas seguem acontecendo, de maneira menos sistemática, sobretudo pelos grileiros, madeireiros, pescadores ilegais, mineradoras e garimpeiros. Não existe fiscalização. A Funai virou Funerária Nacional dos Índios, é cúmplice dos criminosos que estão devastando a Amazônia e os povos indígenas”, ressalta.





Frei Betto vem a Belo Horizonte participar do projeto Sempre um Papo para debate de lançamento de “Tom vermelho do verde”, em conversa com Afonso Borges, no dia 24 de agosto. Antes, ele cumpre agenda de lançamento, ao longo do mês de agosto, no Rio de Janeiro (dia 8), em São Paulo (dia 15) e em Vitória (dia 17).


“TOM VERMELHO DO VERDE”
• Frei Betto
• Editora Rocco (208 págs.)
• Em pré-venda nas principais lojas on-line com preços variando entre R$ 44,95 
e R$ 59,90