Qual é a relação entre a realidade e o que vemos das coisas? Central na obra do diretor iraniano Asghar Farhadi ("A separação", "O apartamento"), o enigma da aparência está entranhado em seu novo filme, "Um herói", com o qual conquistou o Prêmio do Júri em Cannes, no ano passado, e pelo qual foi posteriormente acusado de plágio.
Ele nega ter copiado de uma aluna o roteiro do longa. A dúvida extra-filme, que vem sendo discutida no âmbito da Justiça de seu país, acrescenta a "Um herói" mais daquilo que é sua própria substância.
Na trama, o "herói" em questão é Rahim Soltani (Amir Jadidi), que está preso por uma dívida. Durante uma saída temporária de dois dias durante a qual vai visitar a família, ele se empenha em encontrar a dona de uma bolsa perdida com 17 moedas de ouro.
O gesto chega ao conhecimento da direção do presídio em que Soltani cumpre sua pena, e ele é apresentado à imprensa como um cidadão exemplar. Antes de participar da reportagem, o presidiário alertou ao diretor da penitenciária que não tinha sido ele quem encontrou a bolsa, mas sim sua namorada. Por se tratar de um namoro em segredo, não seria conveniente para o casal contar toda a verdade.
O administrador penal conclui que esse detalhe pouco importa diante do ato em si da devolução e o plano de apresentar Soltani como um herói da ética prossegue com essa ligeira adaptação dos fatos. Na gravação para a TV, ele chega a apontar o lugar exato - um ponto de ônibus - onde "encontrou" a bolsa jogada no chão.
A divulgação da história deslancha uma onda de admiração e solidariedade. Uma ONG se prontifica a arrecadar recursos para que Soltani salde sua dívida e se livre da cadeia. O credor, no entanto, teria que concordar com um bom desconto, mas se mostra inflexível e incrédulo na história da bolsa.
Desconfiança
Ele não é o único. Nas redes sociais, começa a surgir a teoria de que há inconsistências no relato e que toda a história foi inventada para favorecer a imagem da penitenciária e desviar a atenção de suas mazelas.
A desconfiança se alastra, e Soltani passa a ter que provar que não mentiu. Quando "Um herói" (o filme, não seu protagonista) se dedica a buscar onde está a verdade, Farhadi toma o caminho já trilhado em seus títulos anteriores. Ou seja, as informações são parciais e a distância entre a intenção e o gesto parece ser impossível de apreender. Soltani é um ingênuo traído pelas circunstâncias ou um aproveitador sagaz da ingenuidade alheia? Herói ou bandido?
O diretor aduba o terreno da inocência com o personagem do filho de Soltani, uma criança gaga que, para defender o pai, se dispõe a expor sua aflitiva gagueira diante de um auditório repleto de gente ou de uma câmera de TV. Soltani ama o filho exatamente como ele é ou o explora para angariar piedade?
Finais não conclusivos são comuns na filmografia de Farhadi. No caso de "Um herói", no entanto, as pistas sobre o que o diretor quer dar a ver com este filme parecem estar mais firmemente colocadas em sua abertura.
Ao deixar a prisão para sua saída temporária, Soltani perde o ônibus. Depois de descer do táxi que o deixa próximo de seu destino, em Shiraz, ele vence incontáveis degraus de uma escada que conduz ao topo de uma montanha onde se cultua a memória dos grandes heróis iranianos. Ao chegar ao seu destino e encontrar quem procurava, Soltani é convidado a descer, indo de volta para o mundo dos que têm os pés plantados na terra e as mãos embaralhadas na confusão dos dias.
Acusação mútua entre diretor e aluna foi parar na Justiça
Depois de vencer o Grande Prêmio no Festival de Cannes de 2021, honraria que só não é mais importante do que a Palma de Ouro, Asghar Farhadi, foi acusado de plagiar a ideia de uma ex-aluna e indiciado por um tribunal em Teerã, que considerou que partes do filme violam direitos autorais do curta "All winners, all losers" (“Todos vencedores, todos perdedores”, de 2018), de Azadeh Masizadeh.
A cineasta participou de um workshop do diretor em 2014 e percebeu semelhanças entre a trama do longa e a de seu filme. Ela entrou com o processo em março deste ano. O documentário "All winners, all losers" conta a história de um prisioneiro de Shiraz, cidade do Irã, que encontra uma mochila cheia de dinheiro durante uma de suas saídas diárias da prisão e tenta localizar a pessoa que a perdeu.
"Um herói" também se passa em Shiraz e gira em torno de Rahim (Amir Jadidi), um homem que está preso por conta de uma dívida. Fora da cadeia, sua companheira encontra uma bolsa cheia de moedas de ouro que pagariam parte do dinheiro que ele deve. Porém, os dois desistem de vender as moedas e tentam devolver a quantia à verdadeira dona.
Apesar de ser uma obra de ficção que, segundo o diretor, foi inspirada na peça "A vida de Galileu", de Bertolt Brecht, o filme flerta com uma pegada documental. Segundo reportagem do “The Hollywood Reporter”, o imbróglio judicial de "Um herói" começou com uma acusação informal de Masihzadeh contra Farhadi.
Difamação
Na época, o diretor processou a ex-aluna por difamação e ela rebateu, alegando que ele cometeu plágio. A última informação disponível sobre o caso é de abril passado e dá conta de que os dois processos estavam a favor de Azadeh Masihzadeh.
Masihzadeh sustenta que ela mesma descobriu a história retratada no filme, que não havia sido divulgada na mídia. O advogado de Farhadi argumenta que a história já havia sido noticiada, fornecendo links para duas notícias publicadas em 2012. Um colega que participou do workshop testemunhou a favor de Masihzadeh, enquanto alguns outros alunos assinaram uma declaração em apoio a Farhadi.
De acordo com a lei iraniana, se a Justiça considerar Farhadi culpado, ele pode ficar preso por um período. Além disso, Masihzadeh pede participação nos lucros do filme. Caso contrário, ou seja, se o diretor for considerado inocente, a cineasta pode receber chicotadas como punição, além de ficar dois anos presa.
Antes da acusação de plágio, "Um herói" percorreu uma trajetória de sucesso em festivais de cinema mundo afora, a começar por Cannes. Essa foi a quarta vez que o diretor participou do festival francês e a terceira em que ele foi premiado. Farhadi já venceu o prêmio do júri ecumênico por "O passado" (2013) e o de melhor roteiro por "O apartamento" (2016). Ele participou do festival também com "Todos já sabem" (2018), longa filmado na Espanha e estrelado por Penélope Cruz, Javier Bardem e Ricardo Darín.
"Um herói" representa, portanto, o retorno do diretor para sua terra natal. O filme foi rodado entre junho e dezembro de 2020, em Shiraz, e foi escolhido como representante do Irã para competir no Oscar 2022. Apesar de ter sido pré-selecionado para a competição, o filme terminou não sendo indicado.
Apesar disso, Asghar Farhadi tem uma história gloriosa com a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. O iraniano venceu duas estatuetas de melhor filme estrangeiro, com "O apartamento" e "A separação".
"Um herói" chega ao Brasil com distribuição da Califórnia Filmes e, após sua temporada nos cinemas, ficará disponível em streaming por meio da Rede Telecine. Antes de estrear, o filme foi apresentado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e no Festival de Cinema do Rio, ambos em 2021, e na edição deste ano do Festival Varilux de Cinema Francês. A França é coprodutora do longa. (Guilherme Augusto)
"UM HERÓI"
(Irã, 2021, 127 min.). De Asghar Farhadi. Com Amir Jadidi, Mohsen Tanabandeh, Sahar Goldust, Fereshteh Sadre Orafaiy, Sarina Farhadi, Ehsan Goodarzi, Alireza Jahandideh, Maryam Shahdaei. Estreia nesta quinta-feira (28/7) no UNA Cine Belas Artes (Sala 2, 18h20),
Pátio Savassi (18h30 e 21h30, hoje e amanhã; 18h40 e 21h40, sábado e domingo; 18h10 e 21h10, a partir de segunda) e
Cineart Ponteio (16h45, 21h20).
Pátio Savassi (18h30 e 21h30, hoje e amanhã; 18h40 e 21h40, sábado e domingo; 18h10 e 21h10, a partir de segunda) e
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