A literatura voltada para o teatro e as artes da representação, de forma geral, oferece muitos textos dramatúrgicos e biografias de grandes nomes da cena. São raros, contudo, títulos dedicados à reflexão sobre o ofício do ator. Ciente dessa lacuna, a atriz, diretora e professora de teatro Helena Varvaki resolveu se debruçar sobre a questão para sua dissertação de mestrado em teatro na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
A pesquisa teve início nos primeiros anos da década passada e tomou como ponto de partida entrevistas com cinco atrizes de diferentes gerações, orientadas pelo texto “O artista e o artesão”, de Mário de Andrade. Mesmo depois de concluído o mestrado, Helena seguiu burilando o texto, e o resultado é sua estreia como escritora, com o livro “Ator: Um artesão de si mesmo”, que será oficialmente lançado na próxima quarta-feira (3/8), no Rio de Janeiro.
As atrizes entrevistadas para a feitura da obra são Claudia Ventura, Cristina Pereira, Maria Esmeralda, Marjorie Estiano e Patrícia Pillar. O foco das conversas foi como cada uma, com sua inquietude e modo particular, vive o processo de criação e lida com os desafios de seguir na profissão.
Aspectos da criação
Helena aponta que o fio condutor dessas entrevistas passa por três aspectos da criação presentes em “O artista e o artesão”, que ela relacionou com o trabalho do ator. “Nesse texto, Mário de Andrade fala do artesanato, que é a nossa capacidade de mover o material, lidar com o material da nossa arte; da virtuosidade, que é a tarefa de aprender com quem veio antes; e da solução pessoal, que é a singularidade que cada um aplica ao trabalho”, detalha.
Ela conta que, escolhidas as cinco atrizes que entrevistaria, preparou um mesmo questionário para elas, que foi o estopim das conversas que se seguiram. A partir das trocas com essas mulheres, da sua própria experiência e da inspiração no texto de Mário de Andrade é que nasce “Ator: Um artesão de si mesmo”.
“O meu intuito ao lançar este livro é dialogar com os atores no sentido de assumirmos nossa potência nas obras das quais somos parte no processo de criação. É só trabalhando sobre nós mesmos, conhecendo nosso ofício, nos aprimorando como artistas, é que podemos conseguir isso”, destaca Helena.
Mulheres próximas
Ao pensar nas atrizes com as quais iria conversar para escrever o livro, ela aponta que, além da questão geracional, contemplando diferentes faixas etárias, quis delimitar um círculo de mulheres próximas. “Com as cinco, eu, de alguma maneira, tinha uma relação prévia”, diz.
Com Maria Esmeralda, ela lecionou lado a lado na década de 1990; com Cristina Pereira e Cláudia Ventura, fez alguns espetáculos, atuando como atrizes; em relação a Patrícia Pillar, conta que fez o trabalho de preparação corporal dela em muitos espetáculos; e Marjorie Estiano é sua aluna no curso de interpretação que ministra há mais de 10 anos.
“Escolhi essas atrizes para que a conversa pudesse ir para um ambiente de intimidade, que escapasse de um lugar anódino, onde não se fala dos meandros. O livro tem essa característica de falar da lida do ator por dentro, por meio da voz de quem vive isso, com os momentos alegres dessa profissão, que são assustadores, e os momentos de angústia, que também são assustadores”, ressalta.
Mudanças no ofício
Não escapa a Helena nem às suas entrevistadas o fato de que, por diferentes razões, o ofício do ator tem sofrido mudanças ao longo dos últimos tempos. Seja pelas novas configurações na esfera da arte e do entretenimento que o ambiente digital e as redes sociais têm moldado, seja pelo cenário político e social do país ou, ainda, pela chegada da pandemia, que durante um longo período colocou em suspenso a possibilidade do encontro – que, afinal, está na essência do teatro.
Cláudia Ventura identifica mudanças não apenas intrínsecas ao ofício, mas na própria forma de se realizar espetáculos e promover a circulação de trabalhos – o que se relaciona com o cenário político. “Acredito que tenha havido uma mudança substancial na maneira de se fazer as coisas. Há algum tempo, a gente contava mais com mecanismos de fomento, mas ficamos muito órfãos nos últimos anos. Falo não só como atriz criadora, mas também como produtora”, diz.
Ela destaca que esse novo panorama acabou por tomar conta do fazer coletivo no meio artístico. “Nós, atores e companhias de teatro, começamos a realizar nossos próprios projetos, sendo produtores de nós mesmos, por causa dessa realidade. Para além disso, existe a vontade de dizer alguma coisa, como donos do nosso trabalho”, aponta.
Relação madura
Integrante do grupo teatral O Grelo Falante e coautora do seriado “Garotas de programa”, exibido em 2000 pela Rede Globo, ela diz que conhece Helena desde o início dos anos 1990, quando, conforme aponta, pensar o teatro já fazia parte de suas práticas cotidianas.
“Nossos encontros sempre foram envoltos em comemoração, em festa, em alegria e também em reflexão. A gente se acompanha há muitos anos, ela vê meus espetáculos, eu vejo os dela, então há uma maturidade na nossa relação, por isso acredito que ela me fez esse convite”, afirma.
A chegada da pandemia também teve um impacto grande no fazer artístico, segundo Cláudia. “Durante o período de isolamento, acabamos realizando muitas coisas de forma solitária, fazendo pequenas gravações em casa, por exemplo. A gente teve que se reinventar para sobreviver, no sentido de não parar de criar. Isso tem um reflexo no momento atual, quando muitos projetos passam a acontecer em formatos reduzidos; monólogos, montagens pequenas”, avalia.
Redes sociais
No que diz respeito às mudanças provocadas pelo espaço que as redes sociais ocupam atualmente na vida cotidiana, ela considera que existam aspectos positivos e negativos. Por um lado, há a questão dos algoritmos, do alcance, de se medir o quanto um ator vale em função do número de seguidores que ele tem. “Esse é o lado ruim, porque, de repente, você tem pessoas que estão falando para muita gente e que, na verdade, não estão falando para ninguém”, aponta.
O aspecto positivo, ela diz, é que as redes sociais trouxeram a possibilidade de atores e produtores divulgarem seu trabalho sem intermediações. “É um caminho mais democrático. Antes, a gente tinha que ter grana para fazer anúncios, porque os espaços de mídia eram muito caros. Agora, as redes ajudam nesse sentido, amplificam nossa voz”, destaca.
Movimento reativo
Helena, por sua vez, acredita que todos esses vetores de mudanças no cenário das artes dramáticas redundam em um movimento reativo, imbuído de gana. Ela conta que, durante a pandemia, fez um curta-metragem focado em uma atriz que está se preparando para fazer uma personagem e esse processo é forçosamente interrompido. “Essa atriz do curta atravessa a dor da perda e recria. Acho que a gente está recriando”, diz.
“Eu acho – e sinto isso nas pessoas com quem trabalho – que ficamos com mais vontade ainda, estamos mais desejosos de nos dedicarmos ao trabalho. Teve essa dor muito grande da perda, provocada pela pandemia, e por mais brutal que seja este momento que estamos vivendo, com esse boicote à cultura, eu sinto que estamos ficando ainda mais fortes”, acrescenta.
Ela acredita que o maior desafio de ser ator nos dias atuais é justamente manter a conexão com o desejo, não perder a dignidade, não perder o foco e seguir trabalhando, mesmo que as condições sejam muito adversas. “É seguir trabalhando e seguir se trabalhando. O livro trata muito disso e não por acaso tem esse nome, ‘artesão de si mesmo’. Mesmo nos momentos em que não estamos conectados com algum trabalho específico, é fundamental não estagnar, não ceder”, ressalta.
Qualidade da carpintaria
Para Cláudia Ventura, o desafio do ator no tempo presente reside em saber o que dizer e, sobretudo, como dizer. Ela observa que espetáculos muito impactantes, com questões prementes e pautas identitárias, têm vindo à cena, mas que, com frequência, eles sofrem com a “qualidade da carpintaria”.
“A gente tem muito o que dizer e às vezes você tem um conteúdo importante para ser dito, mas isso acaba recaindo num lugar de palanque, que não tem a ver com a cena teatral. Esse livro chega em boa hora, porque ele reafirma a ideia da artesania; a gente está tecendo espetáculos, tecendo uma dramaturgia cênica, textual, em diálogo muito intenso com o nosso tempo. Esse pensamento é o que mais me move neste momento”, salienta.
Já Helena diz que é movida pela necessidade, e que este é outro aspecto que ela trabalha em “Ator: um artesão de si mesmo”. Ela chama de “necessidade querida” aquela que se coloca para além da subsistência ou dos afazeres cotidianos.
“É aquilo que a gente precisa para viver. É necessário fazer o que se faz para a vida não ficar meio sem sentido. Percebo isso em mim e nos meus pares. Quando estou trabalhando, a vida ganha sentido; quando não, você fica sem rumo, se limita a acordar, pagar as contas, comer, voltar a dormir. A necessidade querida é aquela de quem encontra na arte, por exemplo, um sentido para viver.”
“ATOR: UM ARTESÃO DE SI MESMO”
• Helena Varvaki
• Editora Cândido (216 págs.)
• R$ 84