"Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou."
O início de “A hora da estrela”, de Clarice Lispector, é revelador do olhar desconcertante da autora para narrar a vida e a morte de Macabéa, uma moça nordestina de ingenuidade exasperadora e pungente.
O livro foi escolhido pela Confraria dos Bibliófilos do Brasil, instituição brasiliense comandada por José Salles, para celebrar o centenário de nascimento de Clarice Lispector (1920-1977), ocorrido em 2020, e tem ilustrações da artista plástica Mariana Valente, neta da escritora, e posfácio de Paulo Valente, filho da autora de “A hora da estrela”.
Em 2008, a confraria publicou uma coletânea de contos de Clarice, com ilustrações de Marcelo Grassmann, que abriu as portas para a edição de “A hora da estrela”. "Paulo Valente liberou os direitos da obra, o que é importante, pois agora Clarice se tornou uma escritora internacional, quem controla os direitos autorais é uma agência espanhola", explica Salles, presidente e editor da Confraria dos Bibliófilos.
A Confraria dos Bibliófilos do Brasil sempre publica clássicos da literatura brasileira com ilustrações de renomados artistas plásticos. Entre outros, a entidade lançou “Crônicas de Rubem Braga”, com ilustrações de Millôr Fernandes; “Contos de Clarice Lispector”, com ilustrações de Marcelo Grassmann; “A hora e a vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa, com ilustrações de Poty; “A polaquinha”, de Dalton Trevisan, com ilustrações de Darel Valença Lins (ilustrador da série “A vida como ela é”, de Nelson Rodrigues, no jornal “Última hora”).
Centenário
Fundada em 1995, a Confraria publicou mais de 70 livros e é a editora de livros artesanais mais longeva no país. Só para se ter um parâmetro, a segunda é a rica Sociedade dos 100 Bibliófilos do Brasil, em atividade de 1943 a 1969, que editou 23 livros.
A edição de obras esmeradas na passagem do centenário de escritores é uma tradição no Brasil e em outros países; e a entidade brasiliense contou com a sorte, pois conseguiu alcançar os 100 anos de nascimento de Jorge Amado, Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto. "Isso funciona como um importante atrativo. É importante marcar o centenário com uma edição memorável", comenta Salles.
Mariana Valente é designer gráfica e artista plástica. Realizou trabalhos para marcas como Google, Telecine e para as editoras Rocco, FTD e Belas Letras. "Para esse trabalho inédito de ilustração que desenvolvi para ‘A hora da estrela’, quis representar quase que em formato de tatuagem (que são marcas simbólicas que escolhemos deixar no corpo) algumas das passagens e pulsações do livro e da personagem Macabéa, que através da sua simplicidade também machuca o corpo do leitor", comenta Mariana.
Clarice Lispector sofreu, durante muito tempo, a acusação de ser alienada do ponto de vista social, pois escreveu ficções marcadas pela indagação existencial, as iluminações da realidade trivial e a busca da transcendência. Em “A hora da estrela”, ela responde aos detratores com uma vingança delicada, engenhosa e bem-humorada.
Macabéa, a protagonista da narrativa, é uma nordestina de uma ingenuidade pungente: "Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém".
Mas Clarice desnuda a ilusão ficcional e mostra que ela é criação do narrador, Rodrigo S.M.: "É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina". Rodrigo explica também: "Porque há o direito ao grito. Então eu grito. Grito puro e sem pedir esmolas".
Depois de uma cartomante fazer a predição de guinada de felicidade em sua vida, Macabéa morre atropelada. Essa é a hora da estrela: "Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes".
Salles vislumbra na ficção fragmentada de “A hora da estrela” uma narrativa cinematográfica: "Isso ficou claro na excelente adaptação para o cinema de ‘A hora da estrela’ por Suzana Amaral, que imortalizou a interpretação de Marcélia Cartaxo. Com as ilustrações em forma de colagens, Mariana enfatizou ainda mais a conexão com a linguagem do cinema. Parece o esquema de um roteiro para montar a cena", afirma.
“A HORA DA ESTRELA”
• Clarice Lispector
• Edição da Confraria dos Bibliófilos (74 págs.)
• R$ 265
• No site e pelo email: conbiblibr@yahoo.com.br