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Estado de Minas AUDIOVISUAL

Cinema autoral resiste ao 'massacre' de blockbusters e super-heróis

Criações de Lars von Trier, Nicolas Refn, Asghar Farhadi e Apichatpong Weerasethakul, entre outros diretores, tem apoio de plataformas de streaming e festivais


11/08/2022 04:00 - atualizado 11/08/2022 19:00

Close do rosto do ator Amir Jadidi no filme Um herói
Amir Jadidi vive Rahim em "Um herói", filme do diretor iraniano Asghar Farhadi em cartaz em BH (foto: Ashgar Farhadi Productions/divulgaçãobstáculos)

O impacto de um gênero de cinema transformador e provocativo ecoa por décadas e, claro, pode ser medido pelos estímulos (ou entraves) governamentais para que seja difundido. Exemplo gritante do incômodo que essa arte pode causar está em “No bears”, o mais recente longa-metragem do iraniano Jafar Panahi. Dado o teor de sua obra, este cineasta, com passagem multiplicada por festivais internacionais, está preso no Irã, cumprindo a sentença imposta no começo dos anos 2010. Não por acaso, “No bears” é centrado em amores que enfrentam a clandestinidade, sentimentos represados, obstáculos e na opressão.

Asfixiados pelo mercado mais interessado nas estrondosas bilheterias dos blockbusters e super-heróis, filmes com assinatura de diretores empenhados em defender conceitos e a pluralidade de temas resistem. Percebido como uma espécie de concorrente do circuito comercial, o streaming trata de apagar o estigma, cooptando cineastas de grife para desenvolver séries.

Mulher deitada, com o braço ensanguetado, está ao lado de homem de óculos, de bermudas e sem sapato no cartaz da série Copenhague cowboy
"Copenhague cowboy", série de Nicolas Winding Refn (à direita), será apresentada no Festival de Veneza, no final do mês (foto: Space Rocket Nation/reprodução)

Veneza: vitrine para Refn, Lars von Trier e Oliver Stone

Depois de o sueco Ingmar Bergman, um dos diretores mais notabilizados pelo conteúdo e a estética de sua obra, ter o clássico “Cenas de um casamento” (1973) adaptado para a HBO em “Scenes from a marriage”, a forte vitrine do Festival de Veneza, que vai começar em 31 de agosto, terá Oliver Stone (obcecado pela dramatização de feridas americanas, autor dos filmes “W”, sobre George W. Bush, “Nixon” e “JFK”) investindo na escala documental, enquanto Lars von Trier e Nicolas Winding Refn despontarão com séries internacionais.

“Séries trazem o fluxo de energia que funciona a todo momento, são acessíveis e de consumo à mão”, comentou Refn em entrevista ao site IndieWire. Ele levará a Veneza o seriado “Copenhague cowboy”, sobre o submundo do crime na Dinamarca.

O projeto do dinamarquês com a Netflix envolve um “neo-noir” em seis episódios, que dá sequência à obra formada pelos filmes “Só Deus perdoa” e “Drive”. Refn classificou sua experiência na série como “a ideologia, totalmente nova, de como existir".

Reconhecido pela produção densa de filmes violentos como “Anticristo” (2009) e “Ninfomaníaca” (2013), Lars von Trier, outro dinamarquês, lançará em breve cinco episódios de “Kingdom exodus”. A série está conectada a “The Kingdom”, produção audiovisual fantasmagórica dos anos 1990 sobre o completo colapso de uma instituição hospitalar.

Ingmar Bergman, um dos maiores estetas do cinema, morto há 15 anos, ganhou breve retrospectiva, acessível no Telecine Cult, da plataforma GloboPlay. Premiado nos festivais de Veneza e Berlim, o filme “Morangos silvestres” (1957) faz parte do pacote junto de “O sétimo selo”, destacado em Cannes, e “Face a face”.
 
VEJA o trailer de "O sétimo selo", obra-prima de Ingmar Bergman:

 

Contemporâneo do mestre sueco, Pier Paolo Pasolini, um dos cineastas mais provocativos de todos os tempos, teve o clássico “Mamma Roma” (1962) recentemente exibido na 8 1/2 Festa do Cinema Italiano, iniciativa difusora de uma refinada sétima arte.

Partidário da mesma linha, o Festival Varilux (trampolim para a estreia de fitas francesas) trouxe visibilidade para o musical “Tralala”, estrelado por Mathieu Amalric, em cartaz nas salas de exibição do país. Com atores usando máscaras (dada a COVID-19), o longa revela a trajetória de um músico pobre parisiense que se encanta por uma mulher anônima.

Atriz Tilda Swinton olha pela janela em cena do filme Memória
Dirigido por Apichatpong Weerasethakul, "Memória", com Tilda Swinton, está em cartaz na plataforma Mubi (foto: Neon/divulgação)

Belas Artes exibe iraniano premiado em Cannes

Em cartaz em BH, “Um herói”, vencedor do Grande Prêmio do Festival de Cannes, traz a inconfundível assinatura do iraniano Asghar Farhadi, que, desde 2009, com “Procurando Elly”, lançou os sucessos “O apartamento”, “A separação” e “O passado”, com roteiros rocambolescos e mirabolantes. “Um herói” não é diferente. Conta a história de um homem endividado que luta incessantemente para limpar o nome e deixar a cadeia. O longa é exibido à 20h30, na sala 3 do UNA Cine Belas Artes.

Autor de filmes esquisitos do naipe de “Spider” e “Gêmeos – Mórbida semelhança”, o octogenário David Cronenberg volta a perturbar com “Crimes do futuro”, disponível na plataforma Mubi. Deformidades mentais e físicas são ressaltadas no enredo que mistura cirurgia e sexo em meio ao período decadente em que materiais sintéticos e tatuagens se encontram no curso de discutível evolução humana.

De gosto muito discutível também, “Memória”, a nova obra do tailandês Apichaptong Weerasethakul, estrelado por Tilda Swinton, está disponível no streaming da Mubi.

LANÇAMENTOS PROMISSORES EM 2022

Vários filmes autorais serão lançados em breve nas salas de cinema e nas plataformas de streaming. Já negociado com a Netflix, “Bardo” marca o retorno ao México de Alejandro González Iñárritu, depois de “O regresso” (2016).

Memórias e o olhar para realidade contemporânea de um jornalista e documentarista se misturam no roteiro coescrito por Nicolás Giacobone, parceiro de Iñarritú nos longas autorais “Biutiful” e “Birdman”.

Também estará de volta Todd Field, autor de “Entre quatro paredes” (2001) e “Pecados íntimos” (2006), fitas independentes destacadas pelo Oscar. O diretor, de 58 anos, emplaca “Tár”, embalado pela jornada da maestrina Lydia Tár (Cate Blanchett), a primeira profissional a desbravar o ambiente machista de uma orquestra sinfônica.

Sob a chancela da Netflix, o drama “White noise”, adaptação do cineasta Noah Baumbach da literatura de Don DeLillo, abrirá o Festival de Veneza, no final deste mês.

Autor de “História de um casamento” (2019) e “Frances Ha” (2012), Baumbach traz Adam Driver e Greta Gerwig como um casal em crise, assim como no romance lançado em 1985. Casado cinco vezes e pesquisador da trajetória de Hitler, o professor Gladney (Driver), pai de quatro filhos, entra em extremados debates com a esposa sobre a possibilidade de ser o primeiro a morrer. Ambos buscam terapias de cura dado o medo extremado do fim, insuflado pela ameaça química na cidade onde moram, em meio a simulações e treinamentos de evacuação de emergência.

Depois de investir fortemente em tramas perturbadoras ligadas a transformações do corpo feminino, como “Cisne negro” (com Natalie Portman alçando voo) e “Réquiem para um sonho” (no qual a veterana Ellen Burstyn definhava), o diretor Darren Aronofsky prepara para este ano o lançamento de “A baleia”.

O ex-galã Brendan Fraser (“A múmia”) encarna um tipo de 272kg preocupado em estreitar laços perdidos com a filha. O diretor de fotografia Matthew Libatique (“Nasce uma estrela” e “Mãe!”) responde pela atmosfera tensa do longa.

Colin Farell filma com Martin McDonagh

Do inglês Martin McDonagh chegará em breve às telas “The banshees of Inisherin”, cinco anos depois de os atores Sam Rockwell e Frances McDormand conquistarem o Oscar com o seu “Três anúncios para um crime”. Protagonizado por Colin Farell, o novo projeto é centrado em uma ilha na Irlanda.

Conhecido mundialmente pelo sucesso de “Me chame pelo seu nome” (2017), Luca Guadagnino é outro com filme autoral previsto para 2022. No mesmo compasso de horror que impregnou a adaptação do clássico “Suspiria” (2018), o italiano traz para o primeiro plano, em “Bones and all”, os personagens Lee (Timothée Chalamet) e Maren (Taylor Russell, de “Escape room”), saídos da literatura de Camille de Angelis, são jovens às voltas com a compulsão canibal. 
 
Ator Antônio Pitanga empunha lança em cena do filme Casa de Antiguidades
Antônio Pitanga em "Casa de Antiguidades", filme selecionado para o Festival de Cannes em 2020 (foto: Pandora Filmes/divulgação)
 

ENTREVISTA/Antônio Pitanga

"O cinema brasileiro se propõe a denunciar"

“Casa de Antiguidades” é protagonizado pelo experiente Antônio Pitanga, de 83 anos, que participou de vários filmes autorais, como “O pagador de promessas” (1961), de Anselmo Duarte, “Barravento” (1962), de Glauber Rocha,  e “A grande cidade” (1966), de Cacá Diegues. De acordo com o ator, seu novo longa, além de trazer a assinatura marcante do diretor João Paulo Miranda Maria, enfatiza a realidade do povo brasileiro, assim como o cinema autoral feito no país.

O que caracteriza o cinema autoral no qual se insere “Casa de Antiguidades”, que representou o Brasil no Festival de Cannes e foi exibido recentemente na telona?
A assinatura de uma época, de um olhar, de uma década, de pessoas comprometidas com todo o processo político, social e racial. (Em “Casa de Antiguidades”) Há a questão de o povo ser trazido para o primeiro plano. É a grita desse povo sofrido, oprimido, e a assinatura de um diretor presente, como o caso de João Paulo Miranda Maria. Ele traz, com relevância, a problemática brasileira.

Você consegue perceber o cinema negro brasileiro como um todo, formando um painel?
Claro que percebo. Percebo a presença desse painel do cinema que é brasileiro e internacional, mas principalmente brasileiro. Na tela, há o surgimento maciço da problemática negra – seja na questão racial, na invisibilidade e na questão de todo o tipo de preconceito. O cinema brasileiro se propõe também a denunciar. Tenho certeza de que é um painel dos tempos de hoje. E representa, sim, este momento. Há a tela e o grito da população negra.

Você se considera representante do cinema autoral?
Não sei se me considero um representante de cinema nacional. Talvez sim, pela longa carreira, de ter grandes participações em mais 80 filmes e, principalmente, na implantação de um dos movimentos mais importantes no cinema brasileiro e internacional, o Cinema Novo. Ele veio, assim como a Nouvelle Vague e o Neorrealismo. O próprio cinema americano tinha uma proposta autoral. Tudo isso se identifica em “Casa de Antiguidades”.

Como você vê a produção autoral brasileira?
No cinema de autor se vê a assinatura de um Glauber Rocha, de um Leon Hirszman, de um Cacá Diegues, de um Joaquim Pedro de Andrade, de um Nelson Pereira dos Santos e de um Ruy Guerra. São as assinaturas que identificam que movimento é esse, que identidade é essa, brasileira. Que tempo é esse que vivemos no passado e estamos vivendo hoje. Então, a assinatura é importante. “Casa de Antiguidades” é autoral como foi o “Barravento”, como foram “Vidas secas” e “Memórias do cárcere” e “A grande cidade”. Há tantos outros... “Macunaíma”, “São Bernardo”, “Os fuzis” e “Os deuses e os mortos”... 


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