Neste 2022, alguns dos maiores nomes da Música Popular Brasileira comemoram sua chegada aos 80 anos. Gilberto Gil (26 de junho), Caetano Veloso (7 de agosto), Milton Nascimento (26 de outubro) e Paulinho da Viola (12 de novembro) tornam-se octogenários. Eles teriam neste 12 de agosto a companhia ilustre de Clara Francisca Gonçalves Pinheiro, ou simplesmente Clara Nunes, também nascida em 1942, na cidade mineira de Caetanópolis, que, na época, se chamava Cedro e era distrito de Paraopeba, Região Central do estado.
Filha de Amélia Nunes Gonçalves e Manuel Araújo, violeiro conceituado na região, Clara ficou órfã de ambos logo aos 6 anos. A futura estrela seria criada por dois dos seis irmãos: José Pereira Gonçalves, o Zé Chilau, e Maria Gonçalves da Silva, a Dona Mariquita.
A mineira guerreira só conquistaria definitivamente o público e a crítica depois de se converter ao samba. A guinada ocorreu em seu quarto álbum de estúdio, “Clara Nunes”, lançado pela Odeon em 1971. “A Clara era muito boa-praça. Qualquer coisa que você colocasse e ela entendesse, ela arrebentava”, recorda Adelzon Alves, jornalista que estreou na produção musical precisamente com aquele LP.
Antes, Clara havia sido apresentada como cantora de boleros, gênero dominante no Brasil da época, em “A voz adorável de Clara Nunes” (1966), e gravou mais dois discos – “Você passa e eu acho graça” (1968) e “A beleza que canta” (1969), com valsas e sambas-canção. Em suma, os três passaram despercebidos pelo público.
Foi aí que surgiu Adelzon, radialista que comandava até então um programa dedicado ao samba e foi convidado para produzir o álbum seguinte da cantora. Sua estratégia era simples: além de contar com sambas na maior parte do repertório, Clara deveria incorporar uma estética visual afro-brasileira. A inspiração vinha de uma artista luso-brasileira que, anos antes, fizera sucesso internacional.
Espelho em Carmen
O produtor contou ao Estado de Minas que a inspiração em Carmen Miranda (1909-1955) foi o ponto-chave para a transformação na carreira de Clara. A prova do sucesso definitivo veio após “Ê baiana”, composta em uma escola de samba carioca. Antes, em 1968, a artista emplacou um primeiro hit eventual, com o samba “Você passa e eu acho graça” (Carlos Imperial e Ataulfo Alves), num flerte com o gênero que lhe traria estabilidade na carreira fonográfica.
“Eu tinha um projeto de ela fazer, mais ou menos, o que fez Carmen Miranda cantando samba lá fora. A Clara entendeu o projeto, e a gravadora aprovou. Começamos a gravação com ‘Ê baiana’, da escola de samba Em Cima da Hora. Estourou na primeira semana. Seguimos essa linha de samba autêntico. Foi o início de uma grande trajetória”, afirma Adelzon.
A carreira, de fato, deslanchou. Como a mineira passou a ser prioridade no samba da Odeon, a carioca Beth Carvalho (1946-2019), que também integrava o elenco da gravadora, se mudou para a Tapecar. Mais tarde, em 1973, Elza Soares (1937-2022) repetiria o caminho trilhado pela conterrânea.
Da parceria Clara-Adelzon, que em dado momento virou romance, também saíram os discos “Clara Clarice Clara” (1972), “Clara Nunes” (1973) e “Alvorecer” (1974). Com o último, que tem como carro-chefe “Conto de areia” (Romildo e Toninho), a intérprete vendeu 312 mil cópias em um ano, derrubando a crença de que mulheres cantoras não vendiam discos.
A vendagem fez com que a ex-tecelã de Minas Gerais se tornasse a primeira cantora brasileira a comercializar 100 mil cópias.
Voz inconfundível
Além da voz inconfundível, a mudança no figurino também foi decisiva para a construção da figura em torno da artista mineira. Foi aí que entraram em cena o figurinista Geraldo Sobreira, que projetava trajes inspirados em manifestações culturais, como o maracatu, e o cabeleireiro Adevanir Santos, uma das primeiras amizades feitas por Clara em sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1965 – depois de viver em Belo Horizonte por oito anos.
“Falaram para ela deixar o cabelo natural e ela disse: 'Vocês estão malucos?' Por fim, o 'cabelão' acabou ficando e hoje é referência”, comenta o cabeleireiro, relembrando as boas histórias ao lado da eterna amiga.
Clara Nunes morreu em 1983, aos 40 anos, após complicações de uma cirurgia para retirada de varizes. O velório foi realizado na quadra da Portela, escola de samba que acolheu Clara desde sua chegada ao Rio. Adelzon comenta a lacuna deixada por sua partida no coração dos fãs e também entre compositores de samba.
“No tempo da Clara, ela era a única cantora, coerentemente, cantando música de escolas de samba. Quando ela morreu, os compositores dessas escolas ficaram órfãos”, argumenta ele, que também produziu João Nogueira (1941-2000), Roberto Ribeiro (1940-1996) e Dona Ivone Lara (1921-2018).
Homenagens
O Memorial Clara Nunes, no Centro de Caetanópolis, recebe a exposição “Quando eu vim de Minas”, numa referência à música composta por Xangô (1923-2009). Estão expostos roupas, troféus e até uma mecha de cabelo da cantora.
“A ideia era que ela tivesse saído em 2016. Como não obtivemos recursos, a exposição ‘Clara mestiça’ ficou (com a produção estagnada) por quatro anos. Acabou que calhou com os 80 anos (de nascimento) da Clara. Não medimos esforços para fazer essa exposição”, afirma o curador, Marlon de Souza.
A Prefeitura de Caetanópolis também homenageia a cantora com a realização da 17ª edição do Festival Cultural Clara Nunes, com atividades presenciais e no YouTube “Casa de Cultura Clara Nunes".
A agenda teve início no último domingo (7/8) e abarca ações como ateliê ao ar livre e apresentações musicais. Nesta sexta (12/8), dia em que Clara Nunes faria 80 anos, quem se apresenta é Diogo Nogueira. O festival prossegue até domingo (14/8).