''No Brasil, infelizmente, quando um autor morre, também morre sua obra e memória. Alguns escritores, como Osman Lins e Moacyr Scliar, tiveram memória e legado preservados graças às esposas. Veiga não tinha ninguém que fizesse isso por ele'
Ignácio de Loyola Brandão, escritor
Ignácio de Loyola Brandão tinha entre 30 a 40 anos quando ocorreu seu primeiro contato com a obra do escritor goiano José J. Veiga (1915-1999). Chegou a suas mãos o conto “A máquina extraviada”, no qual Veiga narra como a chegada de uma máquina a uma cidade pequena modificou a rotina dos humildes moradores.
Desde que leu o texto, o atual ocupante da cadeira 11 da Academia Brasileira de Letras se tornou fã confesso de Veiga. Admite, inclusive, que foi influenciado pelo goiano. Por esse motivo, ele é o convidado do projeto Letra em Cena. Como ler…, que homenageará o escritor de Goiás e será realizado hoje (23/8), às 20h, no canal do Minas Tênis Clube no YouTube.
Em bate-papo com o curador do evento, o jornalista José Eduardo Gonçalves, Loyola Brandão vai analisar a obra de Veiga, em meio à leitura de trechos de contos e romances selecionados, a cargo do ator Glicério do Rosário.
Destaque da prosa
Ao lado de Lygia Fagundes Telles, Osman Lins e Autran Dourado, Veiga é considerado um dos mais importantes escritores em prosa da segunda metade do século 20 do país. Deixa transparecer em seus textos elementos regionais, como vocabulário, crenças e costumes típicos. Contudo, a prosa de José J. Veiga transcende o regionalismo ao adotar temáticas universais, como a violência e conflitos sociais.
Na época em que o goiano publicou seus livros, vários jornalistas, ensaístas e críticos literários sofreram para encaixar aquela obra em algum gênero. Comparado a Gabriel García Márquez, Veiga passou a ser o representante do realismo fantástico no Brasil, ao lado do mineiro Murilo Rubião.
“José J. Veiga tem como característica o uso da distopia no regional para fazer suas críticas. Ele é como um Tchekhov brasileiro, fala do mundo a partir de sua aldeia. Em ‘A estranha máquina extraviada’, por exemplo, a gente vê que as personagens são pessoas simples de uma cidade pequena que lidam com aquela coisa diferente, justamente a chegada da máquina que ninguém sabe para que serve, mas que vira orgulho da cidade”, destaca Ignácio de Loyola Brandão.
De fato, é a curiosidade dos moradores da cidade que dá vida ao conto. Escreveu Veiga: “Antigamente, os feriados eram comemorados no coreto ou no campo de futebol, mas hoje tudo se passa ao pé da máquina. Em tempo de eleição todos os candidatos querem fazer seus comícios à sombra dela, e como isso não é possível, alguém tem de sobrar, nem todos se conformam e sempre surgem conflitos.”
O autor goiano acrescenta, ironicamente, que a tal máquina é o orgulho da cidadezinha. "E não pense que exagero. Ainda não sabemos para que ela serve, mas isso já não tem maior importância”, escreve.
Por fim, revela o medo da população de que chegue o dia em que alguém saiba fazer aquela coisa funcionar. “Se isso acontecer, estará quebrado o encanto e não existirá mais máquina”.
'José J. Veiga tem como característica o uso da distopia no regional para fazer suas críticas. Ele é como um Tchekhov brasileiro, fala do mundo a partir de sua aldeia'
Ignácio de Loyola Brandão, escritor
Zombeteiro e sarcástico
Veiga era irônico, assegura Brandão. Para ele, o goiano tinha humor sarcástico e fazia críticas extremamente atuais, como no conto “Quando a Terra era redonda” – título, aliás, bastante sugestivo, sobretudo neste momento em que teorias conspiratórias sobre o formato do planeta voltaram à tona, algo que não se discutia com tanto afinco desde Galileu Galilei, no século 17.
A novela de José J. Veiga não é uma crítica aos terraplanistas, mas à perda de tempo das pessoas ao viverem do saudosismo, em vez de tentarem melhorar a realidade.
A ironia também está presente de maneira sutil no romance “A hora dos ruminantes” (1966) e nos contos “A usina atrás do morro”, “Era só brincadeira” e “O trono no morro”.
Esse último mostra a ignorância de moradores do povoado onde um bandoleiro se torna o chefe e instiga a população a se armar.
Embora muitas dessas histórias não tenham sido concebidas para criticar especificamente a ditadura brasileira – alguns contos foram escritos antes do golpe militar de 1964 –, elas foram interpretadas por grande parte dos leitores, na década de 1970, como fábulas em que militares eram retratados como bichos, investigadores despreparados ou invasores.
“A melhor descrição para ele é zombeteiro, palavra muito antiga, mas que define muito bem o Veiga. Ele era, de fato, um zombeteiro. E esse estilo de escrita me influenciou muito. Ele me deu liberdade de escrita”, afirma Ignácio de Loyola Brandão. E revela que o goiano despertou nele coragem para escrever o que lhe viesse à mente, sem receio de se preocupar se a narrativa pertenceria à lógica ou ao que chamam de caos.
Veiga e ''Não verás país nenhum"
A influência de Veiga pode ser percebida em muitas obras de Brandão, principalmente em “Não verás país nenhum”, livro lançado em 1981 que narra o futuro distópico no Brasil. A Amazônia está devastada, recursos naturais são escassos e as pessoas se veem obrigadas a portar máscaras faciais devido à peste que castiga o país,provocando milhares de mortes.
Muito lido durante as décadas de 1960 e 1970, José J. Veiga caiu no ostracismo. “No Brasil, infelizmente, quando um autor morre, também morre sua obra e memória. Alguns escritores, como Osman Lins e Moacyr Scliar, tiveram memória e legado preservados graças às esposas. Veiga não tinha ninguém que fizesse isso por ele”, lamenta Ignácio de Loyola Brandão.
'A melhor descrição para ele é zombeteiro, palavra muito antiga, mas que define muito bem o Veiga. Ele era, de fato, um zombeteiro. E esse estilo de escrita me influenciou muito. Ele me deu liberdade de escrita'
Ignácio de Loyola Brandão, escritor
Curador do Letra em Cena. Como ler…, José Eduardo Gonçalves afirma que a proposta do projeto é justamente dar visibilidade a escritores que merecidamente alcançaram sucesso no passado, mas caíram no esquecimento depois de mortos.
"O objetivo de trazer a obra de José J. Veiga para o debate é fazer com que as pessoas que já o conheciam tenham outra visão de seu trabalho – visão essa que será apresentada pelo Ignácio de Loyola Brandão – e também para que as pessoas que não conhecem o Veiga fiquem curiosas para ler sua obra”, explica o curador.
Para esse segundo grupo Brandão recomenda “Sombras de reis barbudos", "Aquele mundo de Vasabarros", "De jogos e festas" e "A hora dos ruminantes". "Comecem pelos contos para se familiarizarem, depois sigam para os romances”, aconselha o escritor.
LETRA EM CENA. COMO LER JOSÉ J. VEIGA
Com Ignácio de Loyola Brandão. Leitura de textos: Glicério do Rosário. Nesta terça-feira (23/8), às 20h, no canal do Minas Tênis Clube no YouTube. Instagram: @mtccultura.