“Leitor é voyeur.” Essa máxima é dita a certa altura pelo narrador de “Do começo ao fim”, o novo romance de Marcelo Rubens Paiva, escritor que sabe desfrutar da curiosidade das pessoas pelos relacionamentos, DRs e transas alheios – mas tampouco tem pudor para falar de si, do pai morto pela ditadura, do Alzheimer da mãe ou de suas angústias íntimas.
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“Não estou preocupado com a imagem que eu vou deixar (para o futuro), mas com o leitor de hoje mesmo”, afirma o autor, que já alterou trechos de textos antigos para dar um tom mais politicamente correto e não ser tido como machista ou racista.
O “Feliz ano velho” de 2015 não cita mais o motivo pelo qual ele apelidou um enfermeiro de Ding Dong. “Era o nome do percussionista do meu conjunto, só que era branco. Acho que foi uma forma carinhosa de chamar um crioulo de King Kong sem racismo”, explica ele num trecho ainda presente na edição de 2006.
Durante as revisões ele até matutou se deveria dar um novo nome para Neguinho – homem negro que trabalhava para ele, citado en passant no livro. “Esse apelido surgiu na (escola de samba) Vai-Vai”, justifica.
Culpa e autoficção
O arrependimento também move o protagonista de “Do começo ao fim”. Aqui, Paiva vai atrás do macho tóxico que ele percebeu existir desde sempre, mas só começou a ser reconhecido na mídia e nos círculos sociais após o debate à luz do MeToo.
Mas, em vez de buscar um arquétipo, ele preferiu se esbaldar na autoficção para rever diversas relações suas à luz desses aprendizados. “Como é bom ser mais velho! Sofremos muito dos 18 até os 30”, acredita o autor. “Depois disso que você sabe respeitar os limites do outro, como alguns problemas podem ser superados, ou até quais não têm jeito – aí você cai fora.”
Na trama, temos um narrador de meia-idade que reencontra Lívia, a grande paixão da juventude, décadas depois do término. Eles se amassavam loucamente quando jovens, mas tiveram alguns conflitos –em especial, na cama, já que os dois eram virgens quando se conheceram.
“Eles acabam tendo de começar começando. Ninguém ensinava nada, especialmente naquela geração (de 1980). Não tinha internet, YouTube ou sexólogos”, diz.
Depois de ter pisado na bola, o narrador – identificado apenas como “mocinho” ao longo da narrativa – seguiu a vida. Escreveu livros, fez sucesso, estudou em Stanford, foi amigo do filósofo René Girard, casou, separou, transou com alunas mais jovens, virou colunista de jornal etc.
“Esse movimento da autoficção é fascinante. Você lê o livro e não sabe se aquilo aconteceu mesmo”, diz. Há quem diga até que o termo surgiu nos anos 1970, mas explodiu recentemente por aqui com exemplos polêmicos como “Divórcio”, de Ricardo Lísias, ou os romances de Marcelo Mirisola, que Paiva afirma adorar.
“Até lendo Machado de Assis eu penso: 'Esse velhinho, que foi casado por 40 anos com a mesma mulher, pensou em todas essas sacanagens?'”, brinca.
O livro, aliás, não poupa cenas de sexo pulsantes – especialmente quando os personagens se reencontram, já maduros. “A vida sexual começa aos 40 anos”, protesta o autor. “Quem queria ter filho teve, já fez sua carreira, já divorciou e pronto. Agora tá livre para relaxar na cama”.
Ainda assim, Marcelo, que hoje namora uma mulher que encontrou no app de relacionamentos Bumble, teve de mentir a idade para 45 anos, com medo dos estereótipos relacionados a ser idoso.
Fetiche e redes sociais
Mas se o leitor é voyeur, a autoficção não é só uma forma de usar a vida íntima dos escritores como fetiche, agora que eles são vigiados nas redes sociais? “Pode ser que tenha, sim, um desejo da autoficção junto à vontade de autoexposição”, reflete.
Mas Paiva também defende o ficcional como uma forma de falar de angústias da vida por outros caminhos, e cita “No retrovisor”, peça na qual canalizou seus anseios como uma pessoa com deficiência motora, mas na pele de um personagem cego.
Em “Do começo ao fim”, ele aproveita ainda para pingar algumas provocações. Quando uma produtora decide adaptar crônicas do “mocinho” para uma série, há pressão interna para trazer fazer uma protagonista negra e bissexual. “Podia ser qualquer pessoa, sugeri, até cadeirante”, provoca o narrador. “Ou anã.”
Ao mesmo tempo, o narrador crava que, hoje, “pagam-se dívidas históricas em prêmios. Por vezes, é uma causa sendo premiada, não um livro”. “Acho isso ótimo”, afirma Paiva. (Henrique Artuni)
“DO COMEÇO AO FIM”
• De Marcelo Rubens Paiva
• Alfaguara
• 192 páginas
• R$ 59,90
LANÇAMENTO NO SEMPRE UM PAPO
Marcelo Rubens Paiva lança “Do começo ao fim” em Minas, por meio do projeto Sempre um Papo Itabira. Nesta terça (30/8), às 19h, o escritor conversa com Afonso Borges, com transmissão pelo YouTube e Facebook do projeto. Acesso gratuito.