Jornal Estado de Minas

MÚSICA

Série de Luiz Bolognesi põe abaixo o preconceito contra o funk


A série documental “Funk.doc: popular & proibido”, que estreia nesta terça-feira (30/8), às 21h30, no canal HBO e está disponível na plataforma HBO Max, nasceu da curiosidade e também de um sentimento ambíguo de seu criador, o cineasta, jornalista e antropólogo Luiz Bolognesi. Essa dupla motivação o levou a um trabalho de aproximadamente sete anos, que mudou sua visão sobre o gênero musical, jogando por terra vários preconceitos.





O diretor conta que sempre que ouvia a batida do funk nas rádios e nas festas o achava muito interessante e envolvente, “mais do que quaisquer outras vertentes da música pop”, destaca. “Ao mesmo tempo, identificava algumas letras explicitamente misóginas, machistas, até pedófilas, com essa história de ‘vem cá, novinha, senta aqui’ e por aí vai”, aponta.


'Funkeiras' em casa

Entre o interesse pela batida e a desconfiança com relação ao conteúdo das letras, Bolognesi viu a tsunami que se espalhava do Rio de Janeiro para o resto do Brasil invadir sua casa.

“Possivelmente, a motivação mais decisiva para fazer a série foi ver minhas filhas, com 12 e 14 anos, começando a ouvir funk em casa, no carro, nas festas. Elas, que sempre ouviram MPB e pop, de repente estavam mergulhadas naquilo. Resolvi fazer a série para entender aquela expressão cultural que estava chegando com tanta força”, destaca.




Coprodução da Buriti Filmes e da Gullane, “Funk.doc: popular & proibido” lança, ao longo de seis episódios, olhar investigativo sobre o gênero, por meio de entrevistas realizadas com cerca de 50 personagens. Entre eles há MCs, DJs, dançarinos, estudiosos, pesquisadores  e jornalistas.



Desfilam diante das lentes do diretor MC Rebecca, Ludmilla, DJ Renan da Penha, DJ Marlboro, Valesca, MC Carol, Lellê, MC João, Deize Tigrona, MC Guimê, Buchecha, Tony Tornado,  MC Bin Laden, Menor do Chapa e Mr. Catra, em uma de suas últimas entrevistas, concedida três semanas antes de sua morte, em 2018.

“A gente mergulhou em uma pesquisa grande, ao longo de oito meses, e depois passamos um bom tempo filmando. O processo me permitiu entender muita coisa. Meu método de cinema é o da antropologia, quer dizer, não estou ali para dizer o que penso ou acho; quero entender que sentido as coisas fazem para o outro. Então fui fazer perguntas para os agentes dessa expressão cultural. Eles me mostraram que estamos carregados de preconceitos”, diz Bolognesi.





Deize Tigrona leva o olhar feminino sobre sexo para suas letras (foto: Buriti Filmes/divulgação)
 

Mulheres do funk dão aula de educação sexual

O diretor exemplifica o processo de desconstrução de algumas opiniões enraizadas citando a questão das letras do funk. Bolognesi conta que levou para seus entrevistados – as mulheres, sobretudo – perguntas sobre o teor sexista do funk.

“O que me responderam é que o Brasil é um país misógino e machista. É algo que está no dia a dia das mulheres, no ônibus, nas empresas, dentro de casa, onde o assédio e a violência são recorrentes”, aponta.

“O funk faz parte do Brasil, então existe machismo no funk. Isso é uma coisa. Outra coisa é você dizer que o funk é machista; isso é preconceito. As músicas que as mulheres do funk lançam chegam aos homens como veículos de educação sexual, com linguagem direta, levantando demandas femininas na relação sexual”, ele ressalta.





O cineasta também destaca o preconceito que, incialmente, nutria contra o chamado “funk ostentação”, que emergiu em São Paulo na década passada. MC Guimê e MC Bin Laden, cheios de correntes de ouro, figurando em clipes com carrões e cercados de mulheres em piscinas de mansões, lhe pareciam arautos do consumismo fútil.

“Na entrevista que fiz com MC Guimê, ele me dizia que, quando criança, não tinha dinheiro para comprar um tênis para sair. Bin Laden falou que o sonho dele era comer sanduíche de mortadela e tomar Coca-Cola. O termo ostentar, para eles, quer dizer o seguinte: eu tenho direito”, aponta.

“Na entrevista que fiz com Kondzilla, ele observa que o funk ostentação surge quando o projeto do Lula começa a dar certo, com as classes populares chegando a um lugar de poder de consumo. Revi minha opinião. A série mudou meu olhar. Fui entendendo que o funk é vítima do mesmo preconceito que o samba sofreu entre 1910 e 1920, quando chegaram a criar a Lei da Vadiagem, que permitia prender as pessoas que andavam com um violão na rua”, diz.





Para ele, tal preconceito se deve ao fato de o Brasil ser um país racista e classista. “O funk passa por isso porque é música da periferia, mas está aí há quase 40 anos, sempre dando a volta por cima, se não pelo respeito estético e artístico, pela força econômica”, diz, destacando a pesquisa realizada há cinco anos que apontava o gênero como o mais ouvido pela juventude nas dez maiores cidades do Brasil.

Luiz Bolognesi dirigiu o premiado 'A última floresta', longa sobre a questão indígena, e é roteirista de "Bicho de sete cabeças' (foto: Reprodução)

Funk e resistência popular

“O funk, hoje, é um som hegemônico, que dita moda. A elite conservadora brasileira não aceita, porque é racista, então opõe uma resistência muito forte, mas com a qual o funk aprendeu a lidar, porque é a expressão que vem de um povo que está resistindo há mais de 500 anos”, aponta o cineasta. Ele observa que essa resistência se dá mais por infiltração do que pelo confronto.

“O funk não bate de frente com o sertanejo, por exemplo. O que ele faz? Empresta sua batida para o sertanejo. Hoje você tem o funk na música brega, no forró e até na música evangélica”, diz. Sobre a escolha dos entrevistados, ele diz que foi orientada pela pesquisa realizada previamente.

“Acompanhamos desde o surgimento, buscando pessoas que estão na gênese do funk, como DJ Marlboro, e fomos estudando quais artistas fizeram e ainda fazem sucesso. Fomos pensando  de forma a ter um panorama o mais abrangente possível. E conforme a pesquisa avançava, surgiam novos personagens”, diz Luiz Bolognesi, diretor do premiado “A última floresta” .