De que adianta ter uma peça com tradução em libras se a bilheteria do teatro não conta com tradutor para o público surdo? A provocação que a produtora Lais Vitral fez a si mesma expõe uma contradição: ao mesmo tempo em que o setor cultural se propõe a ser o mais inclusivo possível, há carência de políticas de acessibilidade tanto para artistas quanto para o público com deficiência.
“Muitas pessoas ligadas à cultura enxergam as políticas de acessibilidade como um gasto a mais. No entanto, esse valor deve ser visto como investimento e algo essencial ao projeto. E também é possível começar pela acessibilidade atitudinal, que não tem custo nenhum, basta empatia”, afirma a produtora cultural.
Como fazer isso, então? A resposta será dada no Festival Acessa BH, que começa nesta quinta-feira (1º/9) e fica em cartaz até 31 de outubro, destacando o protagonismo de pessoas com deficiência em espetáculos de teatro, dança, música, literatura, seminários e oficinas.
Entre os convidados estão o maestro e pianista João Carlos Martins, que na juventude foi acometido pela distonia focal e teve o movimento de seus dedos comprometido, e o multi-instrumentista Hermeto Pascoal, gênio da música que sempre enxergou muito pouco.
O maestro Martins, um dos principais nomes do cenário erudito do Brasil, participará de bate-papo em live. Aclamado internacionalmente pela habilidade em transformar qualquer ruído em música, Hermeto exibirá seu repertório autoral durante show virtual.
Também integram a programação espetáculos da Cia. Fluctissonante, coletivo paranaense formado por artistas surdos e ouvintes, pioneiro na criação de arte por meio da união do português e da Língua Brasileira de Sinais (libras).
Pluralidade em destaque
Embora a maior parte dos protagonistas do festival apresente alguma deficiência, o evento procura ser o mais plural possível.
“Ampliamos nosso olhar contemplando a diversidade como um todo, com protagonismo também de artistas mulheres e LGBTQIA+, afirma Lais Vitral, que produz o Acessa BH.
Criado em 2020 e reeditado em 2021, o festival surgiu dividido em duas frentes: espetáculos culturais e seminários sobre inclusão. Na edição de 2022, esta proposta foi ampliada. Se nos dois últimos anos foram realizados cinco espetáculos artísticos e seminários, agora serão mais de 50 atividades nos formatos presencial e virtual.
Uma das atrações é o monólogo “E.L.A”, com a atriz e diretora cearense Jéssica Teixeira, que poderá ser assistido no canal do evento no YouTube.
A peça trata da degeneração dos corpos. “São fragmentos de corpos representados em seis hiatos diferentes”, explica Jéssica. Embora o título tenha as mesmas letras da sigla da esclerose lateral amiotrófica, o espetáculo não aborda a doença degenerativa.
“E.L.A” busca investigar o próprio corpo da atriz – segundo ela, inquieto, estranho, disforme – e o modo como ele interage com o mundo. O intuito é criticar padrões de beleza impostos pela sociedade.
Corpo: ferramenta política
O monólogo se propõe a colocar o corpo da artista como ferramenta política e estética que, ao mesmo tempo, desestabilize e potencialize outros corpos e olhares, por meio da reflexão sobre a diversidade e a multiplicidade.
“Nós não escolhemos nascer no corpo em que estamos. Simplesmente nascemos nele. Assim, cabe a nós cuidarmos dele da melhor maneira possível até o final da vida. ‘E.L.A’ busca trazer esse tipo de reflexão para o público”, destaca Jéssica.
A atriz lembra que padrões de beleza ainda são reproduzidos no meio cultural. De acordo com ela, isso é fruto de uma sociedade segregadora, como a brasileira, que tanto exclui quanto mata as minorias representativas.
Concebido por Jéssica Teixeira em 2018, “E.L.A” estreou em 2019, no Ceará. Passou por cidades de Pernambuco e de São Paulo, mas sua trajetória foi interrompida pela pandemia. Sem a perspectiva de voltar aos palcos tão cedo, a atriz, em pouco tempo, adaptou o monólogo para o formato virtual. É assim que o espetáculo vai chegar ao Acessa BH.
O festival promoverá os debates “Diversidade e direitos culturais”, “Acessibilidade em espaços culturais”, “Como os cegos leem” e “Encontro com artistas”, além das oficinas “Composição cênica com dramaturgia descritiva” e “#ForadaCaixa: Acessibilidade criativa para projetos culturais”.
Inclusão está na lei, mas falta conscientização
“O acesso à cultura é direito garantido pela Constituição. Há na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência o capítulo que garante a pessoas com deficiência direito aos bens culturais de maneira acessível, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. Mas isso, infelizmente, é só em tese. Na prática, vemos ser recorrente que, das peças em cartaz, apenas uma apresentação conta com acessibilidade. Esta realidade tem que ser mudada”, afirma Lais Vitral, produtora do Acessa BH.
A principal ferramenta para a mudança, segundo ela, é a conscientização. Justamente por isso, o festival propõe debates e oficinas intercalados com apresentações culturais.
A edição deste ano do Acessa BH foi viabilizada pelas leis municipal e federal de incentivo à cultura. “Muita gente ataca os incentivos fiscais, mas nem sequer sabem como funcionam as leis e a quantidade de projetos culturais que só conseguimos viabilizar por meio delas”, afirma Lais.
A elaboração do Acessa BH foi iniciada em 2016. Lais Vitral conta que enviou documentação detalhada para o Ministério do Turismo para que o projeto fosse avaliado.
“Só depois de aprovado é que temos autorização para captação de recursos. E, mesmo assim, nem colocamos a mão no dinheiro público. O dinheiro vem de empresas que topam nos patrocinar em troca da dedução no Imposto de Renda”, explica.
Os recursos captados por meio da legislação, defende Lais, são uma forma de o poder público cumprir, em parte, sua obrigação constitucional de garantir cultura de forma acessível aos brasileiros.
“Além de proporcionar espetáculos e debates sobre acessibilidade, o Acessa BH possibilita que trabalhos de bastidores sejam realizados por pessoas com deficiência”, destaca a produtora.
FESTIVAL ACESSA BH
Desta quinta-feira (1º/9) a 31 de outubro, no canal do Acessa BH no YouTube, Galpão Cine Horto e teatros de Belo Horizonte. Todas as atividades e espetáculos têm entrada franca. Programação completa: acessabh.com.br. Instagram: @acessabh.
AGENDA
VIRTUAL
>> Quinta-feira (1º/9)
Às 19h, live de abertura com Lais Vitral, Jéssica Teixeira, Moira Braga e Edu O. Apresentação de Brisa Marques. Às 20h, “E.L.A”, com Jéssica Teixeira (CE)
>> Sexta-feira (2/9)
Às 20h, show de Hermeto Pascoal (AL)
>> Sábado (3/9)
Às 16h, “Ventaneira – A cidade das flautas”, com Moira Braga (RJ)
>> 9 de setembro
Às 20h, “Elevador”, com Cia. Fluctissonante (PR)
>> 10 de setembro
Às 20h, “Ciranda de retina e cristalino”, com Cia. Dança sem Fronteiras (SP)
>> 13 de setembro
Às 19h, live com Fernanda Amaral e Gabriel Sousa Domingues, da Cia. Dança sem Fronteiras; Mateus Costa e Fernanda Rosa, do Duo A Corda em Si
>> 19 de setembro
Às 19h, bate-papo sobre teatro inclusivo. Apresentação do ETA Festival!, com esquetes de Escola de Gente (RJ), Os Inclusos e Os Sisos, Teatro de Mobilização pela Diversidade. Às 20h, “Ninguém mais vai ser bonzinho”, com Os Inclusos e os Sisos e Escola de Gente (RJ)
>> 20 de setembro
Às 19h, live com maestro João Carlos Martins seguida de apresentação de Brisa Marques
>> 21 de setembro
Às 20h, “Só se fechar os olhos”, com Coletivo Desvio Padrão (SP). Sessão seguida de bate-papo
>> 26 de setembro
Às 20h, show de O Som da Pele (PE)
PRESENCIAL
>> 16 e 17 de setembro
Às 20h, “Cabra-Cega”, com Pigmentar Companhia, no Galpão Cine Horto
>> 18 de setembro
Às 19h, “Cartas para Irene”, com Oscar Capucho, no Galpão Cine Horto
>> 23 e 24 de setembro
Às 20h, “Pisca devagar”, com Renata Mara e Brisa Marques, no Galpão Cine Horto