Popularizada nos anos 1950 nas páginas da revista especializada francesa Cahiers du Cinéma, a política dos autores tem sido muito questionada desde então, quase sempre com argumentos preguiçosos ou modismos argumentativos.
Acontece que em sua versão mais simplificada, que pode ser chamada de “autorismo”, ela ainda pode ajudar a crítica e a cinefilia no julgamento de alguns filmes, mesmo tendo suas falhas conceituais.
É claro que o risco do equívoco permanece, sobretudo na ideia de que se um filme é de tal diretor, ele só pode ser bom, ou o seu contrário – a má vontade completa com filmes dirigidos por alguém que esteja fora dos altares da autoria cinematográfica.
Evitando os riscos, vejamos o caso de “Era uma vez um gênio”. Além do mau título brasileiro, que já coloca a obra dentro de uma redoma genérica, ainda temos efeitos especiais meio indigestos e a promessa de uma trama bobinha, que não desperta muita esperança.
Mas o longa é dirigido pelo australiano George Miller, cujo último trabalho é o elogiadíssimo “Mad Max: Estrada da fúria”, de 2015, quarto de uma série de ótimos filmes, todos sob sua direção. Ele ainda havia mostrado grande habilidade em soluções de direção inusitadas no belo “Babe: O porquinho atrapalhado na cidade”, de 1998.
Podemos pensar em bom gosto. Para não ficarmos no terreno do que é relativo, contudo, é fácil notar que a direção de Miller prima pela justeza de tom e ritmo e por um domínio inegável da encenação. Nos procedimentos exclusivamente cinematográficos, os filmes desse diretor costumam ser exemplares.
George Miller, Ang Lee e Martin Campbell podem ser chamados de miniautores, por conseguirem, em maior ou menor grau, alguma marca pessoal dentro de uma engrenagem avessa a assinaturas. É o chamado “autorismo” que nos ajuda a entender o que a maior parte de seus filmes têm de notáveis.
Em “Era uma vez um gênio”, o uso da música na segunda metade é louvável, justamente porque casa com a mudança de percepção na protagonista. A música de Tom Holkenborg é belíssima, com ecos de Bach, e sobe nos momentos certos, sem parcimônia, mas também sem chantagear o espectador.
A protagonista é Alithea, solitária pesquisadora de narrativas e mitologia, vivida por Tilda Swinton, que encontra uma garrafa curiosa num bazar em Istambul. Ao limpar o objeto, acaba soltando um gênio aprisionado por muitos anos.
Esse gênio é interpretado por Idris Elba, com orelhas pontudas e tamanhos variáveis – começa como gigante e vai se adaptando à altura normal de um ser humano.
Ele concede a Alithea três desejos. Estudiosa que é, com seu nome de origem grega que remete à verdade, Alithea sabe dos perigos e armadilhas que envolvem essas escolhas. Por lidar bem com sua própria solidão e considerar sua vida plena, ela não tem ideia do que poderia desejar.
Isso põe o gênio numa encruzilhada. Impedido de realizar sua função, é como se ele ficasse aprisionado para sempre, sem poder retribuir pela liberdade alcançada. Para a convencer, começa a contar as histórias dos aprisionamentos anteriores. O filme se torna uma fábula sobre a arte de narrar.
É também sobre o despertar para a necessidade de amar, com a incerteza de ser amada de volta. Lembremos “A arte de amar”, texto antológico do francês Jean Douchet sobre a crítica. Paixão e lucidez em doses equilibradas seriam necessárias a uma boa resenha, segundo o autor.
Os desdobramentos dessa noção nos levarão a uma última meia hora inspirada. Podemos dizer que uma das maiores qualidades de Miller é justamente a capacidade de fugir do que se espera de determinadas tramas. É o que ele faz aqui, novamente.
Alithea é pesquisadora e historiadora. Logo, é naturalmente crítica. O gênio seria a materialização do que ela estuda, do mesmo modo que um filme, de um ponto de vista autoral, materializa a ideia que estava na cabeça de quem o dirigiu.
Se a crítica é a arte de amar, Alithea precisa então aprender a amar para melhor exercer a crítica. E assim temos um ótimo exemplo de como enriquecer o cinema e o pensamento com um filme que na aparência é puramente comercial.
“ERA UMA VEZ UM GÊNIO”
Direção: George Miller. Com Idris Elba, Tilda Swinton, Sarah Houbolt, Aamito Lagum. Em cartaz nesta terça (6/9), no Pátio Savassi: 15h10 e 20h20; BH Shopping: 18h20 e 21h15; Diamond: 21h10; Cidade: 14h15 e 20h50; Del Rey: 13h50 e 21h05; ItaúPower: 18h50 e 21h05; Big:18h40 e 20h50; Cineart Contagem: 18h30 e 20h50; Estação BH: 18h15 e 21h30; Monte Carmo: 18h40 e 20h50.