A África dará o tom no Inhotim neste fim de semana. O Grupo Corpo, com o espetáculo “Gira” – que parte de pesquisas em torno da umbanda e do candomblé e é dedicado a Exu –, e o cantor e compositor baiano Mateus Aleluia, cultuado divulgador da ancestralidade pan-africana, são atrações da festa Anoitecer Inhotim, neste sábado (10/9), e voltam a se apresentar no domingo (11/9).





Ingressos para a festa de logo mais, organizada com o intuito de arrecadar fundos para a manutenção do instituto, estão esgotados. No domingo, basta o ingresso para visitação normal, a R$ 50, para ter acesso às apresentações ao ar livre.

Conexão com Abdias do Nascimento

A escolha do Grupo Corpo, com “Gira”, e de Mateus Aleluia se conecta com o atual programa curatorial da instituição, norteado pelo Museu de Arte Negra idealizado por Abdias Nascimento.

“Gira” tem trilha sonora criada pelo grupo Metá Metá, com participação dos músicos Sérgio Machado e Marcelo Cabral, da cantora Elza Soares e do poeta e artista plástico Nuno Ramos.





Concebido como instalação, o espetáculo, com coreografia assinada por Rodrigo Pederneiras, reconstrói o glossário de gestos e movimentos observados durante as experiências nos ritos de celebração do candomblé e da umbanda – em especial as giras de Exu –, fundindo-o com aos movimentos característicos do Grupo Corpo.

Paulo Pederneiras, diretor da companhia de dança, diz que é a primeira vez que o Corpo se apresenta no Inhotim e também a primeira vez que “Gira” será executado ao ar livre.

Cenógrafo e iluminador do Grupo Corpo, ele observa que o espetáculo foi adaptado às características do museu a céu aberto. Paulo criou o que chama de “não cenário” – caixa preta com três paredes capaz de criar a ilusão de infinito.

“Não considero o que ‘Gira’ tem como propriamente cenário, na concepção que as pessoas têm de cenografia; é mais uma ambientação. É como se fosse uma arena retangular, iluminada, onde acontece a gira de Exu”, aponta.





Em volta dessa arena, bailarinos que não estão dançando ficam sentados, ou seja, permanecem em cena como entidades que podem ser requisitadas a participar da gira.

“Eles usam véu negro e sobre cada um há uma lâmpada, menos para iluminar e mais para indicar que existe ali a entidade convidada a entrar em cena. Eles ficam como que escondidos, mas é possível vê-los no contraste entre luz e breu”, aponta.

Paulo deixa claro que o espetáculo não é a repetição da gira de Exu. “Isso quem faz são as pessoas da umbanda e do candomblé”, pontua. “A gente busca a inspiração nesse universo, mas é outra coisa, uma coreografia para dança. De qualquer forma, as giras são normalmente feitas ao ar livre, então é uma experiência de aproximação dessa matriz, dessa essência.”

Integrante do pioneiro Os Tincoãs, Mateus Aleluia conecta as ancestralidades baiana e mineira

(foto: Paola Alfamor/divulgação)

Combate à intolerância

Pederneiras afirma que é muito importante para o Corpo participar da iniciativa em diálogo com o Museu de Arte Negra, dividindo a cena com Mateus Aleluia. “A cultura brasileira é, antes de tudo, negra”, diz. No entanto, observa, as religiões de matriz africana nas quais “Gira” se inspira são alvo de muito preconceito, daí a importância de serem colocadas sob os holofotes.





“Falta muito para o melhor entendimento do que é a umbanda, o candomblé, Exu ou qualquer outro orixá. Há grande agressividade por parte de algumas igrejas evangélicas contra essas religiões, sobretudo nas periferias. Elas sofrem imenso preconceito. Fico feliz que o Corpo tenha atinado para isso e feito este espetáculo. Além de religião que tem coisas belíssimas, ela é fundamental na nossa cultura”, destaca.

Passados 70 anos desde que Abdias do Nascimento começou a idealizar o Museu de Arte Negra, a cultura de matriz africana encontra hoje ambiente mais favorável para se expressar no Brasil.

“Houve evolução, sim. A partir daquela iniciativa de Abdias do Nascimento, a gente viu espaços se abrindo, com artistas e obras alcançando maior reconhecimento, pelo menos por parte de quem gosta de arte, quem se importa com isso”, diz.
Paulo cita figuras referenciais, como o próprio Mateus Aleluia e o artista plástico Emanoel Araújo, que morreu na última quarta-feira (7/9), aos 81 anos, vítima de infarto.

“Foi uma perda muito grande para as artes, de modo geral, e para as artes de matriz africana, em especial, porque ele foi a pessoa que colocou essa expressão no lugar merecido. Emanoel fundou o Museu Afro-Brasil e teve ação transformadora à frente da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Emanoel foi artista e intelectual de enorme estatura”, ressalta.




O legado de Os Tincoãs

Com pesquisa focada na ancestralidade musical pan-africana, Mateus Aleluia leva ao Inhotim canções de sua carreira solo e músicas emblemáticas de sua época no trio vocal Os Tincoãs. O grupo é considerado pioneiro em agregar à música popular brasileira, nos anos 1970, o universo poético-musical de religiões afro-brasileiras.

Baiano de Cachoeira, Mateus diz que se apresentar em Minas Gerais é especial. “Cada vez que nos vemos envolvidos em uma intervenção dessa natureza, é como se estivéssemos nascendo, saindo do útero e sendo apresentados para a vida. Minas Gerais é muito simbólica nesse sentido, porque é um grande nascedouro da civilização brasileira”, destaca.

Mateus sublinha a contribuição mineira na consolidação do afro-barroquismo que foi mote para o trabalho dos Tincoãs, cujo legado diz levar adiante.

“O trabalho dos Tincoãs ganhou visibilidade entre aqueles que são sensibilizados com a verdadeira ancestralidade do Brasil, que é o entrelaçamento de culturas. Sempre procuramos, de forma espontânea, deixar isso bem patente”, diz.





O afro-barroquismo reverberou fortemente na cidade natal de Mateus. “O alicerce dos Tincoãs foi esse: Cachoeira dormindo, na época de minha infância, sob o som dos atabaques e dos cantos do candomblé e acordando, pela manhã, com o sino da Igreja Católica tocando na célula de ijexá, e depois o órgão da Igreja Católica inundando o Vale do Rio Paraguaçu”, aponta o músico.
 
Mateus carrega consigo essa ancestralidade. Afirma que refere a si mesmo sempre na primeira pessoa do plural por se enxergar múltiplo e por estar sempre bem acompanhado.

“Falo ‘nós’ porque somos muitos. Não tenho personalidade estanque. A cada dia me surpreendo com um Mateus que aparece”, diz. “Somos sempre fruto da comunidade em que vivemos, das pessoas que nos cercam. Éramos Os Tincoãs, agora, na minha fase solo, estou aqui, mas com gente em volta, fazendo esse trabalho de pesquisa em conjunto”, acrescenta.

Seu trabalho de pesquisa, aponta, é, na verdade, a busca espontânea e natural pelas raízes. “Nós somos oriundos desse mundo de que estamos à procura, então é como se estivéssemos fazendo um mergulho interior. É um recuo de existência, é você voltar no seu tempo e no seu espaço e ver quem você foi há 200 anos. É uma questão de pensarmos, de forma livre, sobre como fomos criados e por onde andamos”, diz.





De acordo com ele, esse é um caminho comum tanto na psicanálise quanto no espiritismo. Mateus conta que compõe e toca como quem revisita a infância e toda a sua ascendência. “O importante é voltar no tempo e perceber quem éramos quando estávamos em consonância com nosso antepassado africano. Assim, podemos dar novo significado a tudo isso que somos – não o que fomos ou o que seremos, porque é um estar de forma bem concreta, bem emotiva”, ressalta.

MATEUS ALELUIA E GRUPO CORPO

Instituto Inhotim, em Brumadinho. Neste domingo (11/9), às 16h, show de Mateus Aleluia; às 18h, “Gira”, com Grupo Corpo. A inteira para ingressar no museu custa R$ 50. Meia-entrada na forma da lei. Entrada franca para crianças de até 5 anos.

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