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Estado de Minas CINEMA

UNA Cine Belas Artes exibe ciclo sobre trabalho de Nise da Silveira

Trilogia de Leon Hirszman com pacientes da psiquiatra e entrevista do diretor com ela estão na mostra "Imagens do inconsciente", a partir desta quinta (15/9)


15/09/2022 04:00 - atualizado 15/09/2022 08:07

De óculos e com as mãos entrelaçadas, a psiquiatra Nise da Silveira olha para frente
A psiquiatra alagoana Nise da Silveira deu entrevista a Leon Hirszman, pouco antes da morte do diretor, em 1987. Depoimento ganhou agora a forma de filme, com montagem de Eduardo Escorel (foto: Leo Aversa/O Globo)


Fernando Diniz nasceu em 1918, na cidade baiana de Aratu. Negro, pobre, filho de empregada doméstica, nunca conheceu o pai. Foi para o Rio de Janeiro aos 4 anos e, aos 30, já era considerado “doido”. Não se comunicava, ficava de cabeça baixa e, quando falava, mal dava para ouvir sua voz. A família achou por bem interná-lo em um sanatório.

Adelina Gomes também nasceu em uma família pobre, em 1916, na cidade de Campos (RJ). Ela era considerada na infância e na juventude uma menina tímida, sem vaidades e obediente aos pais. Contudo, aos 18 anos, quando sua mãe reprovou o homem pelo qual ela havia se apaixonado, Adelina virou uma fera e, para mostrar sua revolta, estrangulou o gato de estimação da família. Resultado: foi internada compulsoriamente com diagnóstico de esquizofrenia.

O filho de imigrantes franceses Carlos Pertuis, por sua vez, desde pequeno demonstrava sinais de deficiência intelectual. Nada que impedisse o garoto de viver como qualquer outro de sua idade, no Rio de Janeiro dos anos 1910. 

A morte do pai, contudo, abalou o rapaz. Com quase 30 anos, ele começou a vislumbrar uma imagem cósmica no céu do Rio de Janeiro, que batizou de “o planetário de Deus”. Irrequieto, chamou a família, juntou todos sob o sol e fez a pergunta que se tornou o passaporte para o hospício: “Vocês também estão vendo o planetário de Deus?”.

Fernando, Adelina e Carlos

Fernando, Adelina e Carlos foram contemporâneos no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no bairro carioca de Engenho de Dentro. Contudo, nas condições degradantes às quais eram submetidos diariamente (tratamentos com eletrochoques, lobotomia, entre outras crueldades realizadas no sanatório em nome da “medicina”), é bem provável que nem se dessem conta da existência um do outro. 

Entretanto, com a chegada de uma psiquiatra alagoana, discípula de Carl Jung (1875-1961), os três passaram a ser notados, e não somente por pessoas que frequentavam o centro de saúde de Engenho de Dentro, como também por artistas plásticos, críticos de arte e jornalistas. 

A reviravolta ocorreu porque a nova psiquiatra lançou mão da terapia ocupacional para tratar os internos e, assim, descobriu que havia ali artistas talentosos que pintavam telas, escreviam poemas e produziam esculturas pra lá de modernas. 
 
O trabalho desenvolvido por Nise da Silveira (1905-1999) no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II e a vida de Fernando, Adelina e Carlos são o tema da trilogia cinematográfica “Imagens do inconsciente”, de Leon Hirszman (1937-1987), que o UNA Cine Belas Artes exibe em festival homônimo, desta quinta-feira (15/9) até o próximo dia 21.
 
Os filmes que integram a tríade são “Em busca do espaço cotidiano – Fernando Diniz”, “No reino das mães – Adelina Gomes” e “A barca do sol – Carlos Pertuis”, todos de 1986. 

Os três foram responsáveis por produzir telas, desenhos, poemas e esculturas abstratas que escondiam estruturas artísticas complexas, difíceis de ser reproduzidas ou criadas por qualquer um. Para eles, no entanto, aquilo era passatempo. 

Fernando, por exemplo, produziu cerca de 30 mil obras, entre telas, desenhos, tapetes e modelagens. Adelina, por sua vez, criou mais de 17 mil obras. E Carlos assinou 25 mil desenhos, pinturas, modelagens, xilogravuras e escritos. Todas conservadas no Museu de Imagens do Inconsciente, criado pela própria Nise da Silveira. 

Parceria Hirszman-Escorel

O festival vai exibir ainda o documentário “Posfácio – Entrevista Dra. Nise da Silveira” (2014), gravado por Hirszman e editado por Eduardo Escorel, montador, diretor e parceiro de Hirszman em diversos filmes.

“‘Posfácio – Entrevista Dra. Nise da Silveira’ é um filme simples. Ele é uma entrevista que o Leon [Hirszman] fez com a Dra. Nise, mas não teve tempo de editar, porque morreu antes. Assim, na edição, procuramos mexer o mínimo possível para manter a fidelidade ao original”, conta Escorel.

Ele explica que o material bruto gravado com Nise estava sob os cuidados da Cinemateca Nacional e a ideia de transformá-lo em filme partiu do Instituto Moreira Salles, que arcou com os custos e convidou Escorel para fazer a edição.

A escolha se deu, além da capacidade técnica do montador, pela sua trajetória de parcerias com Hirszman. O primeiro trabalho que os dois fizeram juntos foi a gravação do comício que João Goulart, então presidente da República, fez na Central do Brasil, em 13 de março de 1964, apenas 18 dias antes do golpe que iria derrubá-lo e impor uma ditadura de 20 anos no país.

“Na época, eu estava começando. A gente já se conhecia nesse período, porque havia uma espécie de cena no Bairro Botafogo, aonde as pessoas que mexiam com cinema iam. Então, sempre nos encontrávamos lá. Ele sabia que eu estava começando e me chamou para fazer o som dessa gravação”, relembra. 

A gravação do discurso acabou não sendo editada. No entanto, a parceria deu certo. Hirszman convidou Escorel para outras produções, como os hoje clássicos “São Bernardo” (1971), “Eles não usam black tie” (1981) e “ABC da greve” (1990), nos quais o então iniciante assinou a montagem.

O coração da loucura

Embora tivesse alguma familiaridade com o trabalho de Nise da Silveira, Escorel diz que nunca havia se aprofundado muito no legado da psiquiatra. Foi por intermédio do longa “Nise: O coração da loucura” (2016), do amigo Roberto Berliner, que ele ampliou sua perspectiva sobre o legado deixado por ela.

“Quando o Berliner estava produzindo o filme, ele me levou um dia no centro psiquiátrico de Engenho de Dentro, onde foram feitas as gravações. Lá eu pude ver o museu e também a ala que ainda hoje abriga pacientes. Foi ali que eu tive um contato mais a fundo com o legado da Nise”, ressalta.

Ainda que reconhecido pelos brasileiros, o legado de Nise foi desdenhado pelo atual governo federal. Em maio deste ano, Jair Bolsonaro vetou o título de “heroína da pátria” sugerido à psiquiatra. 

Como justificativa, o presidente afirmou que a proposta de homenagear Nise representava “contrariedade do interesse público” e concluiu dizendo não ser possível avaliar “a envergadura dos feitos da médica Nise Magalhães da Silveira e o impacto destes no desenvolvimento da nação, a despeito de sua contribuição para a área da terapia ocupacional”, mesmo com o enorme acervo do museu fundado por Nise, os relatos disponíveis de ex-pacientes e colegas e o reconhecimento de sua importância pela comunidade científica.
 

PROGRAMAÇÃO

Confira os títulos do ciclo em cartaz no UNA Cine Belas Artes (Rua Gonçalves Dias, 1.581, Lourdes). Ingressos a R$ 10, até dia 21 de setembro, promoção da campanha Semana do Cinema

 

 

“EM BUSCA DO ESPAÇO COTIDIANO – FERNANDO DINIZ”
• (Brasil, 80min, 1986, de Leon Hirszman) - Documentário. Filme aborda os limites da psiquiatria tradicional e desvela a obra do interno Fernando Diniz. Belas Artes 3, nesta quinta-feira (15/9) e na segunda-feira (19/9), às 18h

“NO REINO DAS MÃES – ADELINA GOMES”
•  (Brasil, 55min, 1986, de Leon Hirszman) - Documentário. A vida e a obra da paciente Adelina Gomes, internada após estrangular o gato da família. Belas Artes 3, nesta sexta-feira (16/9) e no dia 20/9 (terça-feira), às 18h

“A BARCA DO SOL – CARLOS PERTUIS”
• (Brasil, 70min, 1986, de Leon Hirszman) – Documentário. Episódio mergulha no universo do artista Carlos Pertius, que vislumbrava uma imagem cósmica chamada de “o planetário de Deus”.  Belas Artes 3, neste sábado (17/9) e no dia 21/9 (quarta-feira), às 18h

“POSFÁCIO – ENTREVISTA DRA. NISE DA SILVEIRA”
• (Brasil, 79min, 2014, de Leon Hirszman) - Entrevista de Hirszman com Nise da Silveira, editada e lançada após a morte do diretor. Belas Artes 3, neste domingo (18/9), às 18h

 


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