Jornal Estado de Minas

MÚSICA

As eleições são "oportunidade para renovar a corrente republicana", diz Gil


Gilberto Gil está no centro das atenções. Seja porque completou oito décadas de vida neste ano; porque foi empossado como imortal da Academia Brasileira de Letras no último mês de abril; porque protagoniza a série “Em casa com os Gil”, lançada em junho; ou, ainda, porque circula, desde o ano passado, pelo Brasil e pelo mundo com sua nova turnê, que chega a Belo Horizonte no próximo domingo (18/9), no Mineirão.





Batizada “Gil in concert”, a turnê traz o cantor e compositor baiano dividindo o palco com os filhos Bem Gil (violão e guitarra) e José Gil (bateria e percussão), e com os netos João Gil (violão e baixo) e Flor Gil (teclados e vocais). Promovido pela produtora Híbrido.cc, realizadora do festival Sensacional, o show marca a estreia do projeto Sensacional Celebra.

A apresentação de Gil e família será precedida pelo show de abertura da cantora cubana radicada em Cabo Verde Mayra Andrade, que aporta pela primeira vez em Belo Horizonte. Os portões de acesso para o anfiteatro do Mineirão – uma estrutura que abarca parte das cadeiras superior e inferior, com o palco montado no gramado do estádio – serão abertos às 16h. Na entrevista a seguir ao Estado de Minas, Gil fala sobre a turnê, o ano eleitoral e comenta a decisão de Milton Nascimento de se aposentar dos palcos. 



Qual o sentimento de dividir o palco com diferentes gerações de sua família?

É uma coisa que se tornou habitual com o passar do tempo, a chegada da idade, a acumulação da experiência, o prazer de encontrar jovens egressos de um tempo que foi bastante marcado e influenciado pela minha geração, então são muitas circunstâncias. Eles são adeptos, discípulos, compartilham do trabalho que fiz no passado, então é muito prazeroso e honroso. Tem um lado edificante do ponto de vista moral.





A turnê “Gil in concert” teve início no ano passado, quando percorreu 18 cidades da Europa e outras tantas no Brasil. Como é esse convívio familiar na estrada? Difere muito do que é no cotidiano do lar?

Claro, primeiro porque estamos reunidos em torno de uma operação, de uma tarefa específica, que é a música, o show, o concerto, enfim, é como se estivéssemos todos no trabalho em uma fábrica ou em uma loja. Tem esse lado aglutinador do trabalho, que, de certa forma, impõe uma certa distância afetiva; são meus parentes, mas também são trabalhadores compartilhando comigo uma tarefa, então tem uma disciplina, um lado voltado especificamente para aquele afazer.

Em casa é diferente, é viver a vida, dividir afetos, responsabilidades familiares, é uma outra coisa. Algo da casa vai para o palco também, mas o palco tem sua especificidade.
 

 
 
A série “Viajando com os Gil” – que dá continuidade a “Em casa com os Gil” – vai acontecer? O diretor Andrucha Waddington fez os registros dos shows?

Sim, foi tudo gravado na excursão que fizemos pela Europa, entre julho e agosto deste ano. Deve ser lançada em junho do próximo ano, como uma segunda temporada, complementando a primeira, que foi o “Em casa com os Gil”, disponibilizada há pouco menos de três meses.

O que você achou da experiência de protagonizar, juntamente com sua família, esse misto de documentário e reality show, conforme definição de Preta Gil?

Trabalhoso, porque é muita gente, pelo menos 60 pessoas envolvidas entre os membros da família, os realizadores e mais a equipe técnica de filmagem, de registro.



Na Europa, eram quatro ônibus viajando entre os lugares, de uma cidade a outra, aquela multidão de gente nos hotéis, as questões logísticas todas, então é trabalhoso, mas – de novo – era a família, então o lado afetivo estava ali. A casa estava sendo transportada o tempo todo para aquelas várias situações.

Estar em turnê é algo que lhe dá prazer, independentemente da companhia?

São cinquenta e tantos anos fazendo isso, regularmente desde 1978, todos os anos. De lá pra cá, somente um ano eu não fui para a Europa, então é um acúmulo de tempo de viagens. Me habituei a fazer dessa oportunidade de trabalho também um modo de conhecer os lugares, os países, as culturas, as línguas, então é muito construtivo. Tem sido parte da construção da minha própria vida, da minha personalidade, então é prazeroso e, como tudo, dá trabalho também.

O repertório que você apresenta em “Gil in concert” tem se mantido o mesmo ao longo da turnê?
Tenho tentado fazer com que sim. Já que tenho a possibilidade de construir vários repertórios e abordar esses repertórios de várias maneiras, com pequenos grupos, com grupos maiores, solo às vezes – foram vários os momentos em que me apresentei sozinho, com meu violão –, quando eu escolho para um determinado momento um roteiro musical, procuro mantê-lo.



Mantive nos vários shows que fiz na Europa e na volta também, em alguns que fiz aqui no Brasil. Tenho tentado manter o mesmo setlist, abrindo com “Expresso 2222”, seguindo com “Viramundo”, visitando momentos do passado, e com essa formação: eu, Bem, José, João e Flor.

Além de seus filhos e netos, quem mais integra a banda que o acompanha nesse show?

Somos só nós mesmos e o Marcelo Costa, que compartilha num concerto ou em outro; vem e substitui o José na bateria e às vezes complementa como percussionista. Ele tem sido praticamente o único de fora da família que se junta a essa formação.



O que orientou a escolha das músicas que compõem o roteiro do show?

É um desejo de revisitar coisas do passado que foram significativas, como “Viramundo”, composição minha com o Capinam que é do meu primeiro disco, um trabalho que foi muito marcado pela coisa telúrica do Nordeste – é uma música nordestina nesse sentido. Tem “Expresso 2222”, que dá título a um dos meus discos mais importantes.



E tem “Palco”, que também marcou época no conjunto do meu trabalho. Foram vários os critérios de escolha, e um deles foi a própria meninada, sugerindo que eu tocasse isso ou aquilo, coisas que eles cresceram ouvindo; são músicas que vêm pelo afeto familiar.

Que visão você tem hoje, aos 80 anos, sobre a obra que você construiu ao longo de quase seis décadas?

É muito difícil a gente ter, em relação à nossa própria obra, uma distância que os outros têm, os que não se envolveram na construção dessa obra, que não estiveram engendrados nas tramas das canções, dos shows. É difícil.

Ultimamente, por exemplo, com as três edições dos livros sobre minha composição, com esse último agora abarcando quinhentas e tantas letras de música, às vezes tenho tido oportunidades de me debruçar como um leitor qualquer de poesia, de obra literária, mas sou muito envolvido pelas coisas que fiz, então o distanciamento adequado é muito difícil de ter.



Muitas das canções que fiz estão ligadas a tramas amorosas, a conflitos domésticos; outras são visões particulares de mundo, marcadas por um traço ideológico.

A inspiração para compor segue acompanhando-o da mesma forma como sempre acompanhou?

Menos, hoje em dia. Antigamente havia uma volúpia, uma voracidade, um senso aflitivo de dever. Agora não, não existe mais essa aflição. Eu, mais velho, as energias são outras, muito mais moderadas já, não tenho tanta volúpia como tinha.

Caetano, Milton Nascimento e Paulinho da Viola são outros três artífices da música popular brasileira que completam oito décadas de vida este ano. No seu entendimento, qual a principal contribuição que essa geração deu para a cultura brasileira?

É uma cultura que começa a se produzir no meio do século 20, depois da Segunda Guerra Mundial, porque somos todos nascidos nesse período; somos de 1942, com a guerra em plena vigência, a luta contra o nazismo, e junto com ela o fortalecimento do desejo da construção democrática povoando o mundo todo, a Europa, o Brasil, então é uma geração marcada por tudo isso.

Também pelo surgimento de movimentos culturais importantes, como a bossa nova e tudo o que a antecedeu de imediato. Somos resultado de tudo isso. E, como disse, de uma visão de mundo onde o pós-guerra nos dava um senso de responsabilidade para com a democracia, uma visão republicana do Estado moderno. Somos filhos disso e é isso que expressamos com nossa arte.





Milton, com quem você gravou um álbum em parceria em 2000, anunciou no início deste ano a aposentadoria dos palcos. Como você recebeu essa notícia? Foi algo que o fez refletir a respeito?

Acho que sim, é um gesto importante, corajoso, desprendido, que significa uma ultrapassagem do ego, um ir além dos compromissos com a individualidade, um gesto de respeito à condição histórica que um personagem como ele adquiriu. O fato de ele deixar que a história presida a vida dele daqui pra frente é bacana; um ser histórico que se reconhece como tal.

Que avaliação você faz do atual cenário musical brasileiro?

São outras coisas, uma gama muito variada de artistas, todos eles submetidos à velocidade extraordinária dos meios contemporâneos, à fragmentação extraordinária de gêneros que nos povoa hoje, com o surgimento de propostas novas, que foram se sucedendo como híbridos de coisas do passado, mas também com muita originalidade.

É também uma geração marcada pelo individualismo típico da sociedade contemporânea, então é outra história, outra música, outra poesia, outro texto e outro contexto.

E com relação ao cenário político e social, que avaliação você faz do Brasil de hoje?

Estamos às portas de uma eleição que vai, de uma certa forma, redefinir a relação entre a sociedade e o Estado no Brasil, com muitos governos estaduais sendo renovados, com o Congresso, até certa medida, sendo renovado, e com a renovação do próprio Executivo, ante a expectativa de eleição do ex-presidente Lula (de quem Gil foi ministro da Cultura), que é uma expectativa cada vez mais a se confirmar.



É um momento de busca por uma renovação política em meio a um mundo onde as coisas estão muito difíceis. A pós-modernidade e a globalização dão ao Brasil e a muitos outros países uma condição de dificuldade mesmo para operar essa dimensão republicana. Mas as eleições agora são uma oportunidade para um novo momento de renovação dessa corrente.

SENSACIONAL! CELEBRA
Shows de Mayra Andrade e Gilberto Gil, neste domingo (18/9), a partir das 18h, no anfiteatro do Mineirão (Av. Antônio Abrahão Caram, 1.001, Pampulha). Portões abertos às 16h. Ingressos: Pista: meia (1º lote) R$ 200; ingresso solidário (1º lote) R$ 240; inteira (1º lote) R$ 400. Cadeira inferior: meia (1º lote) R$ 100, ingresso solidário (1º lote) R$ 140, inteira (1º lote) R$ 200. Cadeira superior: meia (1º lote) R$ 80, ingresso solidário (1º lote) R$ 100, inteira (1º lote) R$ 160. O ingresso solidário exige a entrega de 1kg de alimento não perecível na entrada do evento. À venda no Sympla