Jornal Estado de Minas

MÚSICA

"O cara rico tinha vergonha de pedir um sertanejo na loja", diz Chitãozinho


Em algum momento da primeira metade dos anos 1980, Xororó estava em Nashville, a meca da música country americana, quando comprou um banjo de segunda mão. "Nunca tinha visto um banjo na minha vida, mas lá era comum", diz o cantor, que, ao lado do irmão Chitãozinho, completa 50 anos de carreira. "Percebemos que a música country tinha muito a ver com a sertaneja."





O banjo apareceu pela primeira vez mesclado à sonoridade caipira em "Ela chora chora", de 1985, mas não foi apenas o instrumento que Chitãozinho & Xororó trouxeram na bagagem. "Ficamos muito interessados na maneira de eles se vestirem – as roupas franjadas, as calças rasgadas e apertadas, uma mistura de rock com country", diz Xororó. "Ele trouxe o banjo e eu trouxe o chapéu", acrescenta o irmão.

As influências americanas marcaram a carreira da dupla, que, mesmo sem abandonar as letras sobre o campo, àquela altura era protagonista na popularização do sertanejo. Se antes era limitada aos interiores de Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Mato Grosso e Goiás, a música do campo passava então a acompanhar a urbanização das grandes cidades do país enquanto também se transformava.

Este mês, Chitãozinho & Xororó retornaram aos Estados Unidos para gravar projeto audiovisual ao vivo, acompanhados por orquestras e com participação de Sandy, Junior e Luan Santana. Eles reuniram 14 mil pessoas em quatro apresentações, incluindo o Radio City Music Hall, em Nova York, que celebram as cinco décadas de uma trajetória sem igual não só no sertanejo, mas em toda a música brasileira.



Influências 

Muito antes dos americanos, era a América Latina que inspirava os irmãos José Lima Sobrinho e Durval de Lima no interior do Paraná. "A gente conhecia o trio Pedro Bento, Zé da Estrada e Celinho, que até se vestia de mariachi", diz Chitãozinho, citando a influência dos sons do México. "Eles eram os mais próximos, mas Belmonte e Amaraí cantavam assim, e depois Milionário & José Rico também tinham essa veia, da rancheira, fincada lá."

Na virada dos anos 1960 para os 1970, a chamada música caipira tinha como inspiração as rancheiras, os boleros, as serestas e as guarânias. Não à toa, o primeiro sucesso de Chitãozinho & Xororó, "Galopeira", de 1970, foi importado diretamente do Paraguai.



Os irmãos começaram a carreira ainda adolescentes, perseguindo o sonho frustrado do pai de ser músico, mas já queriam transcender a música caipira. "Quando morávamos no Paraná, crescemos com o timbre do Roberto Carlos no ouvido. Ouvíamos muito Beatles, Wanderley Cardoso, Jerry Adriani, todo aquele movimento da Jovem Guarda", diz Chitãozinho.





Mais do que a voz e os cabelos longos do rei, eles queriam somar às violas aqueles baixos, guitarras e baterias do rock. "Quando a gente ia gravar um disco, o produtor falava que 'não, tem que ser viola, violão'. Às vezes não queria botar nem o contrabaixo. Tinha que ser acordeom. A gente dizia que 'não, não é isso que a gente quer, porque isso todo mundo já faz'."

Até o fim da década de 1970 – isto é, a primeira fase da dupla –, os irmãos tocavam em circos e contavam o dinheiro escasso que recebiam da gravadora. Vender 5 mil cópias de um álbum era o ápice. Artisticamente, dizem, eram muito contrariados. Tudo mudou quando conheceram o produtor Homero Bettio, que viraria amigo e empresário.

Demissão 

A essa altura, Chitãozinho & Xororó já tinham pedido demissão da Copacabana, selo que lançava suas músicas, e fazer um álbum com Bettio era como uma última dança. "Disseram 'se não der certo, a gente dispensa vocês no ano que vem', aí nós aceitamos", diz Chitãozinho. "Quando Homero mostrou o que ele estava fazendo, ficamos de boca aberta. Era um sonho. Exatamente o que a gente queria."





Ainda não era a estética arrojada que a dupla adotou a partir da década seguinte, mas o novo tratamento das gravações impulsionou músicas como "60 dias apaixonado", de 1979, e "Amada amante", de 1981, que colocou a carreira dos irmãos em ascensão.

Esse processo foi coroado com "Fio de cabelo", música que vendeu mais de 1 milhão de cópias do álbum "Somos apaixonados", lançado há exatos 40 anos. É um patamar alcançado apenas por gente como Roberto Carlos e Nelson Gonçalves, impensável para a música sertaneja àquela altura.

"Sertanejo no rádio só tocava em AM, de madrugada e no fim de tarde, e só no interior", diz Chitãozinho. "Começamos a perceber que as rádios começaram a tocar durante o dia. Começaram a pedir e a tocar em FM. Essa música mais do que triplicou o nosso público. Tinha gente que não ouvia e passou a ouvir música sertaneja."





"Fio de cabelo" pôs a música sertaneja no cardápio dos ritmos mais consumidos do Brasil, onde hoje é o prato mais pedido da maioria dos brasileiros. Mais até do que isso, ela trouxe uma nova poética para o estilo, que ficou mais próximo da música romântica ou brega.

Conforme escreveu o pesquisador Gustavo Alonso, o próprio Marciano, dupla de João Mineiro e compositor da música ao lado de Darci Rossi, não quis gravá-la porque a achava melodramática e melancólica demais até para os padrões sertanejos.

Sofrência

Se hoje a sofrência domina o sertanejo, ela certamente tem raízes em "Fio de cabelo". "Eu diria que foi a primeira canção que abriu essa porteira para a música se tornar mais romântica e mais bem-elaborada de poesia, de harmonia e de tudo", diz Xororó.





Mas as mudanças não vieram sem resistência. "Lembro-me de que Inezita Barroso, que sempre foi a rainha do caipira, chamava isso de 'sertanojo'", diz Chitãozinho. "Sofremos muito preconceito. Quando estourou, o cara rico, que vinha do interior, tinha vergonha de entrar na loja e pedir uma fita de sertanejo. Ele mandava o motorista ir comprar, mas tocava no carro. Depois, o caipira virou moda."

Dali em diante, Chitãozinho & Xororó não pararam. Vieram as idas aos Estados Unidos, os banjos e gaitas, as mudanças de figurino, a popularização dos rodeios, o acréscimo de banda com baixo, guitarra e bateria e o Rock in Rio de 1985. Eles viram no festival o show do Yes, banda de rock progressivo britânica, e pegaram a ideia de fazer um palco elaborado, com fumaça e pirotecnia.

Exigências

Na segunda metade dos anos 1980, diz Chitãozinho, quem movimentava as massas eram eles, Sidney Magal e RPM. Foi então que a dupla passou a exigir equipamentos de som e estrutura melhores, investir para viajar com banda, algo que influenciou a popularização de todo o sertanejo Brasil afora.





O movimento adiantou o sucesso de Leandro & Leonardo e Zezé di Camargo & Luciano, já na virada da década seguinte, marcando a exposição crescente do gênero na TV, a expansão para plateias do Nordeste e chegando até o especial "Amigos", na Globo, em 1995.

"Nossa imagem ficou conhecida. O cabelo e o figurino viraram moda", diz Xororó. Em certa altura, acrescenta o irmão, eles tinham que viajar com dois jatinhos para dar conta da estrutura de banda e palco. "Fizemos 285 shows em um ano, mas ficamos doentes."

Hoje, eles celebram o pioneirismo com uma agenda bem mais confortável, de não mais do que "uns seis shows por mês", e dizem que nunca tiveram cachês astronômicos, ao contrário do que acontece com astros do sertanejo como Gusttavo Lima e Zé Neto & Cristiano, que dominaram o noticiário por receber cachês que beiram ou ultrapassam R$ 1 milhão vindos dos cofres públicos para tocar em cidades com poucos milhares de habitantes.





"As coisas têm que ser às claras. É ridículo um artista cobrar um cachê milionário numa cidade pequenininha de tantos mil habitantes e aquele dinheiro ser tirado do próprio povo", diz Xororó. "Não tem lógica. Não tem cabimento nem o prefeito fazer isso nem o artista receber, mas cada um é cada um. A gente se preocupa muito com isso. Estamos aqui há mais de 50 anos e não é à toa."

Voto

A dupla, que no auge de seu sucesso apoiou Fernando Collor contra Lula, em 1989, e figurou na campanha de Aécio Neves contra Dilma Rousseff, em 2014, agora não toma lado nas eleições. "Acho que a gente tem que respeitar o voto de cada cidadão. Independentemente de quem vai ganhar esta eleição, a gente segue sendo brasileiro e trabalhando, produzindo no nosso país", diz Chitãozinho.

Ele vê certa semelhança no apoio que a classe sertaneja deu a Collor e, atualmente, ao presidente Jair Bolsonaro. "Foram duas surpresas, dois candidatos que estavam lá, mas ninguém sabia de nada. Eles apareceram do nada e chegaram lá. Tomara que isso seja um exemplo para muitos políticos, de saber que às vezes a pessoa que está no poder não tem a voz. A voz é do povo."





Já Xororó resume seu pensamento lembrando a música "A nossa voz", que a dupla gravou na eleição de 2018. A letra prega a união e reúne figuras de diversos ritmos e correntes políticas – de Caetano Veloso e Gilberto Gil a Elba Ramalho, passando por Karol Conka, Michel Teló e Ivete Sangalo, entre outros. "Esse é o país que eu quero construir/ Com nosso povo andando de mãos dadas vamos conseguir", diz o refrão.

"O voto está aí, com a democracia", diz Xororó. "Vamos continuar assim porque a gente sabe que do outro jeito não foi legal. Pegamos o finalzinho, a gente era criança ainda, mas eu me lembro muito bem de que era bem mais difícil. A gente tem que se juntar. A democracia é isso."