Jornal Estado de Minas

MÚSICA

Livro resgata a trajetória de Manoel Barenbein, o produtor da Tropicália

 
A Tropicália, surgida em 1967, transformou a música e a cultura brasileiras, chamando a atenção do país para o talento de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes, Gal Costa, Tom Zé, Torquato Neto e Rogério Duprat, entre outros. Para contar essa história, ninguém melhor do que Manoel Barenbein, responsável pela produção dos discos tropicalistas lançados no final da década de 1960.





Campanha de financiamento coletivo busca viabilizar o livro “Tropicália – Manoel Barenbein e os álbuns de um movimento revolucionário” (Garota FM Books), do jornalista e pesquisador Renato Vieira.

Com prefácio de Gilberto Gil e 17 capítulos, o projeto traz curiosidades e histórias inéditas reveladas pelo respeitado produtor fonográfico, que hoje tem 80 anos e vive em Israel. As doações podem ser feitas até 1º de outubro, por meio do site www.catarse.me/tropicalia.
 
Os jovens Jorge Benjor, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee, Gal Costa e os irmãos Sérgio e Arnaldo Baptista (sentados) revolucionaram a música brasileira nos anos 1960, em discos produzidos por Manoel Barenbein (foto: Bossa Nova Films/reprodução)
 

Da rádio à RGE

Paranaense de Ponta Grossa e radicado em São Paulo a partir dos anos 1940, Manoel Barenbein é um dos principais produtores de discos da MPB. Aos 17 anos, ele começou a trabalhar na Rádio Bandeirantes, tornando-se secretário do jornalista e produtor Walter Silva (1933-2009), diretor artístico da emissora.




“Comecei a frequentar as rádios paulistas e acabei me enturmando com muita gente. Aprendi com o Walter os primeiros passos da nova música brasileira, que era a bossa nova. Isso por volta de 1959”, relembra Barenbein. Na gravadora RGE, levado por Walter Silva, o paranaense iniciou sua trajetória na indústria fonográfica.

“Comecei minha vida profissional como boy no Departamento de Divulgação, cujo chefe era o José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni. Saí da RGE e fui para outras gravadoras, até que o Walter me chamou para trabalhar no Teatro Paramount, onde iniciaria o esquema de shows de bossa nova. Foi uma fase maravilhosa, pois abriu meu caminho para conhecer pessoas e entender como era o processo de gravação (de discos)”, conta o veterano.

O mais importante dos eventos produzidos no Teatro Paramount foi o programa “Dois na bossa’, com Elis Regina (1945-1982) e Jair Rodrigues (1939-2014). Manoel era um dos técnicos de gravação.

“Com o estouro do programa, a Elis e o Jair acabaram assinando com a TV Record e passaram a apresentar ‘O fino da bossa’, em 1965”, relembra. “Fui contratado pela gravadora RGE como assistente da direção artística, e lá produzi a cantora Cláudia, Zimbo Trio e Erasmo Carlos.”




 
Detalhe da capa do primeiro LP de Chico Buarque, lançado em 1966, cujas fotos viraram meme neste século 21 (foto: RGE/reprodução)
 

Estreia de Chico Buarque

Foi Manoel Barenbein quem levou Chico Buarque para gravar na RGE. “Produzi os dois primeiros discos dele: o primeiro, ‘Chico Buarque de Hollanda’ (1966), tinha a música ‘A banda’. O outro era ‘Chico Buarque de Hollanda volume 2’”.

“Depois fui para a Phonogram/Philips, e é aí que entra a história do livro. Recebi convite da gravadora depois de me demitir da RGE. Nessa época, havia o Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. Tínhamos 18 artistas do cast classificados naquele festival. Resolvemos, então, fazer três LPs, com 12 músicas em cada disco.” Barenbein gravou 23 das 36 faixas dos três álbuns.

Jovens talentosos vindos da Bahia foram grata surpresa para ele. “No dia em que fui falar com Caetano e Gil sobre o disco deles que iria produzir, levei um choque, porque eles me deram de presente o meu sonho: fazer música popular brasileira com guitarra e baixo elétrico, mudando um pouco a concepção de violão e baixo acústico”, relembra.





“Eu já trabalhava com o Erasmo Carlos, ouvia o rock dele e achava que podia fazer uma mistura. Quando os dois baianos falaram que queriam guitarra elétrica nas gravações e o Caetano disse que queria gravar com a banda argentina Beat Boys, foi o presente maior que eu poderia ganhar”, continua.

Caetano pediu a banda Beat Boys porque gostava da sonoridade do grupo. “Ele achava que era o som ideal para ‘Alegria, alegria’. Por outro lado, ‘Domingo no parque’ deveria ter arranjo do Júlio Medaglia, mas acabou sendo do Rogério Duprat. O Júlio era jurado do festival da Record e não poderia fazer as duas coisas ao mesmo tempo. E assim nasceu a minha parceria com o Duprat, que foi uma coisa maravilhosa.”
 
 

Sacudida tropicalista no Brasil

Detalhe da capa de ''Tropicalia ou Panis et circensis'', disco coletivo lançado em 1968 que se tornou clássico da MPB (foto: Philips/reprodução)
A revolução tropicalista teve em Manoel Barenbein um observador privilegiado. “Os versos de ‘Alegria, alegria’ e de ‘Domingo no parque’ deram uma sacolejada em tudo o que estava acontecendo na época. Já havia bom número de pessoas envolvidas, como Tom Zé, Gal Costa e Torquato Neto como compositor. A participação dos Mutantes cimentou todo o processo da Tropicália. A banda fez um pedestal perfeito para o movimento.”

A ideia do produtor era reunir talentos e lançar o que os norte-americanos já faziam: um disco com vários artistas. Foi assim que surgiu o LP “Tropicalia ou Panis et circensis”. “Se você tem dentro da gravadora artistas do mesmo gênero, faça um disco com todos eles. Ou seja, um disco que não é de carreira de alguém, é de todos”, comenta.





“Tropicalia ou Panis et circensis”, LP que reunia Caetano, Gil, Gal Costa, Nara Leão, Tom Zé e Os Mutantes, foi lançado em 7 de agosto de 1968. Barenbein afirma que Caetano lhe contou que “Alegria, alegria”, lançada em 1967, veio de “A banda”, sucesso de Chico Buarque. “Ele disse que a simplicidade da melodia o inspirou.”
 
CAETANO VELOSO canta "Alegria, alegria" em 2011:
 

 

Barenbein e a mão de Deus

Aos 80 anos, Manoel Barenbein faz questão de agradecer a Deus por tê-lo colocado na hora certa, no lugar certo e com as pessoas certas.
 
“É algo divino. Conseguimos criar uma coisa tão impressionante que, mesmo depois de quase 60 anos, continuamos falando dela. É algo muito consistente, um conteúdo eterno. Isso me dá satisfação e orgulho. É uma honra ter meu nome ligado à Tropicália. Do mesmo jeito que é tê-lo ligado a Chico Buarque, Jair Rodrigues e tantos outros.”





Outra revelação: Manoel conheceu Chico Buarque como compositor e o incentivou a interpretar as próprias canções. “Tive a minha parcela em fazê-lo cantar músicas autorais, mas o Toquinho e o Walter Silva também tiveram. De maneira geral, essa história é memória que não pode ser jogada fora, não por mim, mas pela música popular brasileira. A memória deve ser preservada. O objetivo do livro é colocar tudo isso no impresso, porque no áudio a gente já tem. Isso para que as pessoas possam ler daqui a não sei quanto tempo.”

O tarimbado Barenbein não considera a Tropicália o movimento mais importante da música brasileira. “Não existe o maior. Considero três movimentos básicos, falando dos anos 1950 para cá: Bossa Nova, Jovem Guarda e Tropicália. Era a união de forças.”

De acordo com o produtor, o movimento tropicalista começou em 1967, durante o Festival da Record, com “Domingo no parque” e “Alegria, alegria”. “E, em 1968, com 'Divino maravilhoso', da Gal Costa, também inscrita no Festival da Record, além do LP ‘Tropicália’, o do Gil e o do Caetano. Já o disco coletivo chama-se ‘Tropicalia ou Panis et circensis’. O do Gil é aquele que leva o nome dele, no qual está vestido com o fardão da Academia Brasileira de Letras (ABL). Acabou que a profecia se cumpriu. Gravamos esse disco na Bahia, em 1968, antes do exílio, quando os dois ainda estavam confinados em Salvador”, relembra.




 
 

Caetano e Gil confinados em Salvador

O produtor diz que não foi problema gravar com Caetano e Gil em confinamento, no fim dos anos 1960, imposição da ditadura militar após a prisão da dupla, no Rio de Janeiro.

“Levamos o equipamento para Salvador. O Gil já tinha preparado tudo, até os arranjos para uma banda comandada pelo Pepeu Gomes. O problema é que o grupo ficou sem os instrumentos. Isso porque foi a um programa de televisão e cantou uma música da qual o empresário, dono dos instrumentos, não gostou. Ele acabou levando o equipamento para o interior da Bahia.”
 
Com músicos, mas sem equipamento, Manoel diz que gravou somente voz e violão nos dois LPs. “Gil gravou voz e violão no dele e Caetano cantou acompanhado pelo violão de Gil, em seu disco. Levamos as gravações e colocamos orquestra em São Paulo e no Rio de Janeiro. Foi uma aventura”, diz.




Mas o livro não se limitará aos baianos. “É toda a minha história com 15 artistas. Além daqueles envolvidos com a Tropicália, ainda tem Erasmo Carlos, Claudette Soares e Jair Rodrigues, entre outros”, ressalta Manoel. “Ali está a história dos anos 1960/1970”, diz.

E as histórias, aliás, são muitas. “No primeiro disco solo do Caetano, ele queria gravar ‘Dora’, de Dorival Caymmi, e queria que o Dori Caymmi o acompanhasse. Embora tentássemos diversas vezes, não saiu legal, ninguém ficou contente, apesar dos esforços. Como Caetano queria música de mulher, sugeri para ele: por que você não grava 'Clarice', que é uma música linda?”, revela. “Havia relacionamento entre todos nós para dialogar sobre qualquer coisa, era jogo aberto.”
 
GILBERTO GIL canta 'Domingo no parque',em 2014:
 

 

Ideia do livro surgiu durante a febre dos podcasts

O jornalista Renato Vieira conta que seu livro se baseia no podcast que fez com Manoel Barenbein em 2021, chamado O produtor da Tropicália. “A gente se conhece desde 2018, quando ele estava indo embora do Brasil, pois tinha se aposentado e decidiu se mudar para Israel, onde residem vários membros de sua família.”





Durante a pandemia, em meio à febre dos podcasts, Vieira decidiu produzir a atração com Barenbein.

“Ele foi o produtor de todos os discos dos artistas da Tropicália, com exceção do álbum do Tom Zé. 'Tropicalia ou Panis et circensis' foi produzido por ele, assim como os dois primeiros discos solo de Caetano e do Gil, os de Gal Costa e dos Mutantes. Inclusive, foi ele quem contratou Os Mutantes para a gravadora. Fiz uma série de nove episódios em que ele fala sobre cada um dos artistas”, diz Renato Vieira.

“O último episódio foi sobre o disco que Manoel produziu, mas não chegou a sair, com João Gilberto, Caetano e Gal.”

Vieira conta que foi procurado pela Editora Garota FM, que lhe propôs transformar o conteúdo do podcast em livro. “Topei, mas desde que pudesse colocar conteúdo exclusivo. Por uma questão de limitação, alguns artistas ficaram de fora. Então, estamos incluindo seis artistas que não estavam no podcast: Nara Leão, o maestro Rogério Duprat, Ronnie Von, Jair Rodrigues, Erasmo Carlos e Claudette Soares.”

“Manoel sempre foi uma pessoa de bastidores, nunca gostou de aparecer. É um produtor muito importante para a música brasileira e acabou de fazer 80 anos. Acho muito importante valorizar as pessoas enquanto elas estão vivas”, diz o jornalista.





“São muitas histórias interessantes, como a capa do primeiro disco solo do Caetano, quando a própria gravadora a vetou. Manoel foi até o diretor e conseguiu que ele a liberasse”, adianta.

“Manoel fala também do maestro Rogério Duprat, considera-o seu braço direito. Eles se admiravam. Manoel produziu dois discos solo dele: ‘A banda tropicalista do Duprat’ (1968) e ‘As mais belas canções sertanejas’ (1970). Fizemos um capítulo só para os discos do maestro”, diz o autor.
 
(foto: Reprodução)
"TROPICÁLIA – MANOEL BARENBEIN E OS ÁLBUNS DE UM MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO”
• Livro de Renato Vieira
• Editora Garota FM Books
• Campanha de financiamento coletivo por meio do site Catarse (www.catarse.me/tropicalia)