Jornal Estado de Minas

ARTES VISUAIS

Sérgio Moro vira rato em exposição da artista mineira Rivane Neuenschwander


Porto –
Com uma seleção de obras de forte cunho social e político, a artista visual mineira Rivane Neuenschwander acaba de inaugurar sua primeira exposição individual em Portugal, “Sementes selvagens”, no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto.





"O juiz de fora", escultura inspirada em Sergio Moro e na Operação Lava-jato (foto: Rivane Neuenschwander/divulgação)
“A arte é fundamental para fazer o equilíbrio entre seduzir e denunciar (um problema)”, afirma Neuenschwander, que defende ainda o engajamento dos artistas com as questões do Brasil.

“Tudo o que a gente faz é político, desde a hora em que acordamos até irmos dormir. Quem tem voz não pode ter medo”, afirma a artista plástica, que esteve em Portugal para o lançamento da exposição.
 
A mostra foi estruturada em torno do filme mais recente de Rivane Neuenschwander, “Eu sou uma arara”, que estreou na exposição, exibido com destaque em um telão gigante logo na entrada.





A produção, feita em parceria com a cineasta brasileira Mariana Lacerda, propõe a reflexão crítica sobre vários temas atuais do Brasil, como o desmatamento da Amazônia e a violência contra povos indígenas, além dos conflitos políticos e sociais.

A narrativa do média-metragem é permeada pelo visual marcante de pessoas caracterizadas com máscaras e trajes coloridos, trazendo representações alusivas à flora e à fauna brasileiras, como jacarés e aves.

Parangolés e cosmogonia bororó

Os personagens aparecem representados em diversas situações e interações com a população, da distribuição de “mensagens revolucionárias” no Centro de São Paulo à participação em manifestações políticas na capital paulista, incluindo um ato contra o presidente Jair Bolsonaro.





A ideia de experiência efêmera, com participação social e política, se relaciona com momentos marcantes da arte do Brasil, como o movimento neoconcreto e as obras da série “Parangolé”, de Hélio Oiticica.

O nome do filme faz referência à expressão usada pelo povo indígena bororó, do Mato Grosso do Sul, que tem forte ligação com as araras.

“Os bororós acreditam na ideia de transmigração, de que, quando morrem, a alma passa para uma arara. Eles até dizem que, muitas vezes, a essência do bororó é ser arara”, afirma a curadora da mostra, Inês Grosso.

Dom, Bruno e Marielle

O filme apresenta ainda vários cartazes com reflexões sobre a situação dos povos indígenas, incluindo a violência perpetrada por garimpeiros. Os nomes do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, assassinados no Vale do Javari em junho, e da vereadora Marielle Franco, morta em março de 2018, também estão presentes.





Além dos elementos visuais, Rivane Neuenschwander chama a atenção para a trilha sonora da produção, que também agrega facetas interpretativas ao filme.

“Era importante para nós que houvesse muitas camadas sonoras que significassem outras coisas. Por exemplo, quando aparecem as bolhas de sabão contra os prédios, o som que se escuta é de um ataque a tiros contra yanomamis”, detalha.

Inspirada no livro homônimo de Machado de Assis, a instalação “O alienista” traz uma série de esculturas, feitas com papel machê e outros materiais, que reinterpretam personagens do clássico literário. As figuras, no entanto, ganham referências à vida política brasileira atual.

Lava-jato, Moro e bucha de limpeza

Inspirada em Sergio Moro, a peça “O juiz de fora” traz a figura de um rato vestindo terno e gravata. A escultura segura em uma mão um pano nas cores da bandeira dos Estados Unidos e, na outra, uma espécie de bucha de limpeza.




“É uma referência à Lava-jato”, afirma a artista, explicando que as roupas do boneco são cópia das vestes do magistrado durante interrogatório do ex-presidente Lula.

A exposição tem ainda o conjunto de pinturas “Trôpego trópico”, que apresenta uma sequência de figuras, entre o humano e o sobrenatural, envolvidas e entrelaçadas sobre um fundo preto. As peças mesclam diferentes influências, desde as estampas erótico-satíricas japonesas até elementos da literatura de cordel.
 
“Os quadros têm a alegria, têm a sedução, têm cores, mas têm também uma carga de violência”, diz a artista.

A curadora Inês Grosso lembra a importância da expressão crítica no trabalho da mineira, afirmando que Rivane Neuenschwander “traça um paralelo entre o Brasil contemporâneo e o colonial”, pondo em evidência problemas persistentes, como o poder autoritário, o medo e a devastação ambiental.
 
Quadro da série 'Trôpego trópico' (foto: Rivane Neuenschwander/divulgação)

Na avaliação de Neuenschwander, a presença de obras que evocam a exploração e o caráter predatório da colonização pode contribuir para a reflexão do público europeu sobre o tema.





“É uma reflexão importante, um tema sensível, mas necessário – tanto para nós, para sabermos de onde viemos, quanto para eles, para refletirem sobre o que ocorreu”, diz. “É importante desconstruir a ideia do brasileiro cordial, porque o que a gente tem lidado ultimamente é uma reprodução do que já vivemos.”

Do Senhor do Bonfim para o mundo

Instalada em área do outro lado do complexo, na capela que agora pertence ao museu está uma das obras mais conhecidas da artista, “Eu desejo o seu desejo”.
 
"Eu desejo o seu desejo": fitas do Bonfim (foto: Rivane Neuenschwander/divulgação)
É um conjunto de fitinhas coloridas, produzidas de forma a lembrar a estética das pulseiras do Senhor do Bonfim, na Bahia. Em vez do nome do santo, cada uma traz um desejo alternativo, recolhido em diversos pontos do mundo por onde a peça já passou.

Há pedidos mundanos, como comida e cafuné, até desejos impossíveis, como um unicórnio. Pelo caminho, há espaço também para considerações filosóficas e sociais.
 
A mostra “Sementes selvagens” permanecerá em cartaz no Porto até 9 de abril de 2023.