Jornal Estado de Minas

EXPOSIÇÃO

Rafael Freire leva beleza do Aglomerado da Serra para a Praça da Liberdade

Os últimos dias têm sido de ansiedade para Rafael Freire. O fotógrafo autodidata de 29 anos, morador do Aglomerado da Serra, cujo foco do trabalho é o registro do cotidiano de sua comunidade, inaugura neste sábado (1º/10), às 11h, sua primeira exposição física, no Memorial Vale.




 
Os registros de pessoas, lugares e cenas da favela feitos por Rafael vêm, há algum tempo, chamando a atenção de Lázaro Ramos, Babu Santana, Zélia Duncan e do coletivo Mídia Ninja – que comentam ou repostam suas publicações –, mas ainda não haviam saído do ambiente virtual.
 
Quem também atentou para a produção de Rafael, concentrada principalmente em seu perfil no Instagram, foi o fotógrafo Eugênio Sávio, curador do projeto Mostra de Fotografia, do Memorial Vale, que o convidou para expor naquele espaço. “O Eugênio já acompanhava o meu trabalho e me fez esse convite”, diz.
 
Inspirado pela poesia de uma estudante, Rafael Freire plantou flores na favela e incorporou-as ao seu trabalho (foto: Rafael Freire/Divulgação)
A exposição é batizada com o mesmo nome de um projeto que Rafael desenvolve desde 2014: “Favela, a flor que se aglomera”. O fotógrafo explica que a seleção das 16 fotografias e dos três vídeos que compõem a mostra foi orientada pelo desejo de contar, de forma sintética, o percurso desse projeto, que cobre todo o período que ele contabiliza como sendo de exercício profissional de seu ofício.




Outras lentes

“Comecei a fotografar no início de 2011, mas considero que, profissionalmente, levando a fotografia um pouco mais a sério, foi em 2015. Nessa exposição, tento contar um pouco essa história, como nasceu o projeto ‘Favela, a flor que se aglomera’, que busca a valorização dos moradores do Aglomerado da Serra”, aponta. “Sempre digo que se trata de fotografar com outras lentes, que não as do racismo”, acrescenta.
 
O tom poético marca as imagens e também os trabalhos em vídeo do fotógrafo autodidata (foto: Rafael Freire/Divulgação)
A história de como surgiu o projeto é tão dramática quanto inspiradora. Rafael conta que, em 2014, havia acabado de começar a trabalhar na Escola Municipal Senador Levindo Coelho, dentro do Aglomerado, quando uma guerra de facções do tráfico não só obrigou a suspensão das aulas como tornou desertos os becos e vielas da comunidade.
 
Ele resolveu sair pelas ruas fotografando logradouros habitualmente cheios de gente e que estavam completamente vazios. Quando as aulas foram retomadas, levou as imagens para que as crianças expressassem o que sentiam ao vê-las. Uma das alunas deu a resposta em formato de uma poesia que o deixou particularmente tocado, conforme relata. O texto dizia: “De noite eu posso ver/ como a vista mais bela! /Quero aprender/ Com esse tanto de gente da Serra/ quero uma linda flor amarela.../ Mas que pena/ não acho na favela”.




 
 

Flores na favela

“Era uma criança que não via flores na favela. Comecei a reparar e me dei conta de que realmente não tinha flor. Entendi que, através da fotografia, eu podia florir a favela de uma outra forma”, afirma.
 
A primeira ação que ele empreendeu foi plantar várias sementes em uma encosta do morro. Depois que desabrocharam, as flores começaram a ser usadas como ornamentos dos personagens nas fotografias que Rafael fazia, com as pétalas amarelas harmonizando com os cabelos e corpos negros.
 
O fotógrafo se diz um “contador de histórias reais”, que se expressam não só por meio de imagens estáticas, mas também vídeos e textos – não raro de tom poético – que acompanham sua produção.




 
Em seu Instagram, é possível assistir a uma série, batizada “Querido diário”, de vídeos com narração, que ele começou a publicar há pouco mais de um mês. Em muitos deles, o lirismo é um veículo para externar a indignação contra a miséria e a violência que grassam na comunidade.

“Querido diário”

“Revolta”, responde Rafael, sobre a motivação para “Querido diário”. “São coisas que vivo e vejo dentro do Aglomerado. Transformo isso em relatos”, acrescenta. O último vídeo postado foi há duas semanas, mas ele diz que pretende dar continuidade a essa produção – que é ao mesmo tempo oposição e complemento ao trabalho com as fotografias, sempre pautadas pela beleza estética e poética.
 
Menino do Aglomerado da Serra (foto: Rafael Freire/divulgação)
“Continuo fazendo os vídeos e escrevendo os textos. Pretendo ter pelo menos uns 100 episódios do ‘Querido diário’; quem sabe fazer disso uma minissérie”, cogita, destacando que o trabalho em vídeo caminha junto com a fotografia. “Sempre gostei de filmar, e costumo fazer em vídeo os bastidores das sessões fotográficas. Já o texto-base das imagens é sempre uma poesia, alguma reflexão minha”, aponta.




 
Um desses registros de bastidores flagra um instante de um ensaio que fez recentemente com a modelo Natália Deodato, uma das participantes da última edição do reality “Big brother Brasil”, da TV Globo. “Eu a conheci através de um amigo meu. Ele virou um dos assessores dela, que viu meu trabalho, gostou e disse a ele que queria fotografar comigo”, conta Rafael.

"Coração suburbano"

Recentemente, ele também fotografou o humorista Rafael Portugal, por conta de sua passagem pelo Aglomerado da Serra para a realização da série documental “Coração suburbano”, idealizada e apresentada por ele, e que começou a ser disponibilizada no início desta semana no serviço de streaming Paramount +.
 
O fotógrafo é um dos personagens da atração. “Apareço fazendo os registros do desfile de moda que a gente montou na comunidade, organizado pela produção da série. Conversei com Rafael Portugal, fiquei sabendo que ele também nasceu no subúrbio, perguntei se topava fazer foto com uma flor e ele topou na hora”, conta, destacando que participar da série foi uma experiência muito positiva.




 
“O pessoal da produção convidou vários moradores da comunidade para o desfile. Eu colaborei, indiquei pessoas, rodei com a equipe para eles conhecerem o Aglomerado, fui apresentando pontos turísticos, a turma que eu conheço e alguns projetos que são desenvolvidos aqui”, relata.

Pele negra

Ele diz que fotografar pessoas famosas e figuras públicas também é um caminho que lhe interessa, de preferência sem ter que se distanciar do que é o eixo de sua proposta.
 
“Gostaria de fotografar famosos que saíram de comunidades, porque aí posso usar isso como referência; quero manter a cara do meu projeto, valorizando a pele negra, que é o que está no centro do que eu faço”, aponta.
 
Rafael sublinha que desenvolve seu trabalho de forma totalmente independente, mas que, a despeito das dificuldades, vai levar a proposta adiante e seguir com o sonho de viver exclusivamente de seu ofício. Ele conta que deixou a função de monitor de fotografia na Escola Municipal Senador Levindo Coelho no início deste ano e tem se mantido graças a trabalhos esporádicos e contribuições.





“Às vezes, aparece um ensaio para eu fazer, às vezes não. Acontece também, de vez em quando, alguém – normalmente os personagens que eu retrato – fazer uma doação simbólica para que eu possa continuar meu trabalho”, diz. Ele destaca que tem buscado, ainda, diversificar os empreendimentos em torno da fotografia.

Visto Preto

“Criei uma marca, que se chama Visto Preto, para vender fotos emolduradas, de moradores da comunidade, e também moletons e camisas estampadas com o escrito ‘Favela’ e com flores. O que arrecado com as vendas ajuda no meu sustento e também é revertido para quem posa para essas fotos, que são pensadas como obra de arte mesmo, para a pessoa ter o quadro pendurado na parede de casa”, ressalta.
 
Fotos de Rafael Freire se inspiram na beleza do negro brasileiro (foto: Rafael Freire/divulgação)
Rafael quer ampliar os horizontes para além do Aglomerado da Serra, visitando e produzindo em outras favelas da capital mineira e do Brasil. Recentemente, ele viajou ao Rio de Janeiro a passeio, acabou fazendo um ensaio com um grupo de admiradores locais de seu trabalho e aproveitou para conhecer a Rocinha, o Vidigal e outras comunidades cariocas.




 
“Fui para essas e outras favelas por minha conta mesmo. Em breve, vou conhecer o Morro do Macaco, em Santa Catarina. Quando vou a esses lugares, vejo que a diferença está mesmo só no sotaque e nas gírias; o resto é tudo igual. Quero conhecer mais favelas para fazer essa conexão”, aponta.

Redes sociais

Estímulo não lhe falta. Seu trabalho reverbera cada vez mais nas redes sociais e ele sabe que esse é um caminho a ser explorado. “Teve uma foto que repercutiu muito, que batizei ‘Salto para o futuro’, postada recentemente no Instagram. No TikTok, ela teve 5 milhões de visua- lizações. Esse tipo de coisa traz uma visibilidade legal para meu trabalho. As redes sociais são meu canal de divulgação. Até o LinkedIn eu estou usando agora para postar foto”, diz.
 
Ele destaca que tem um contingente fiel de seguidores. “Tem gente que acompanha meu trabalho desde que comecei, então a interação é muito boa. São pessoas que estão me seguindo há oito anos, que se manifestam dizendo que ficaram emocionadas com alguma imagem que produzi. Tem gente que me envia áudio chorando. A interação com quem admira meu trabalho é muito gostosa.”

“FAVELA, A FLOR QUE SE AGLOMERA”

Abertura da exposição de Rafael Freire, neste sábado (1º/10), às 11h, no Memorial Vale (Praça da Liberdade, 640, Funcionários), (31).3308-4000. A mostra fica em cartaz até 29/10 e pode ser vista às terças, quartas, sextas e sábados, das 10h às 17h30; às quintas, das 10h às 21h; e aos domingos, das 10h às 15h30. Entrada franca