Uma livre adaptação da obra literária de Clarice Lispector para o cinema. Quem poderia imaginar algo tão ousado na história da cultura brasileira e transportar a escrita melancólica, profunda e reflexiva da escritora para o cinema? A diretora Marcela Lordy não só pensou, como lançou o filme “O livro dos prazeres”, baseado no livro homônimo da autora.
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Na trama, a protagonista Lóri, interpretada por Simone Spoladore, é uma professora do ensino fundamental, nascida em uma família tradicional do Rio de Janeiro, que tem dificuldade de estabelecer relações afetivas. Sua vida muda quando conhece o professor de filosofia Ulisses, papel do ator argentino Javier Drolas, que desperta a necessidade de transformação em Lóri e a faz mergulhar em seus traumas e enfrentar a solidão, até que esteja curada e pronta para amar.
Na versão da diretora, os personagens principais são bem menos conservadores que na obra original, publicada em 1969, o que não significa uma Clarice retrógrada. No livro, ela inverte a narrativa patriarcal, em que o homem é o grande aventureiro. Lóri é quem toma a iniciativa e decide encontrar o seu eixo antes de se entregar ao amor.
“A escritora bagunça essa questão de gênero e isso está retratado tanto no livro quanto no filme”, diz a diretora, que faz questão de ressaltar que a produção delicada e poética vem ao encontro do que as pessoas estão procurando atualmente: o amor. “Estamos carentes (risos)”.
Ideia de Walter Salles
Da ideia – vinda de Walter Salles, com quem Marcela Lordy trabalhou durante muitos anos – até o lançamento do longa foram 12 anos de dedicação. Os dois primeiros ela correu atrás da compra da licença e dos direitos de Clarice. Mais sete anos se passaram até a finalização. Só que “O livro dos prazeres” foi afetado pela pandemia e o lançamento oficial, que seria em 2020, acabou adiado. O que, segundo a diretora, coincidiu com a trama.
“O contexto do filme mudou, mas a nosso favor. Lóri resolveu se isolar para uma jornada de autoconhecimento. Na vida real, passamos por um período de isolamento compulsório, mas que nos ensinou a gostar de ser uma companhia na solitude, o que se assemelha com a personagem”, conta.
Figura onipresente no longa, Simone Spoladore traduz as mulheres de Clarice Lispector com sua aura misteriosa e excêntrica.
“A Simone tem o mistério da Clarice, é uma mulher que sabe silenciar. O livro narra a evolução de uma pessoa que aprende a olhar as suas feridas. É um filme de cura, e a Simone tem essa profundidade, que também combina comigo”, celebra a diretora.
A crítica consagrou a produção. “O livro dos prazeres” foi exibido em mais de 15 festivais e recebeu premiações no Bafici (competição americana), com o troféu de Melhor atriz para Simone Spoladore e Menção honrosa para o longa. No Festival de Cinema de Vitória, recebeu o prêmio de Melhor roteiro, Melhor interpretação (Simone Spoladore) e Menção honrosa para fotografia de Mauro Pinheiro Júnior. Também foi premiado no Festival do Rio 2021.
Aos 48 anos, Marcela Lordy tem longa trajetória profissional dedicada às artes visuais. Cineasta, roteirista e produtora, “O livro dos prazeres” marca sua estreia na direção de longa-metragem de ficção, mas sua jornada no cinema reúne “A musa impassível” (2010), telefilme produzido para a TV Cultura, “Ouvir o Rio: Uma escultura sonora de Cildo Meireles” (2012), “Ser o que se é” (2018) e “O amor e a peste' (2022), entre outros. É dela a direção do longa “Turma da Mônica” (2022), da Globo Filmes.
O trabalho de Marcela cruzou as fronteiras e chamou a atenção de uma das principais revistas de entretenimento e cultura do mundo, a americana Variety. A publicação diz que ela faz parte da “nova geração de jovens cineastas brasileiras que é um dos fenômenos mais interessantes vistos atualmente no cinema da América Latina.”
Cientista surda
Transitar pelas mais diversas mídias e para diferentes públicos continua nos planos de Marcela Lordy, que está concluindo a produção de “O silêncio de Aline”, história de uma cientista surda, comunicativa e barulhenta, vizinha de musicista que precisa de silêncio para criar. Leandra Leal está confirmada como protagonista.
Além disso, a diretora trabalha na ideia de uma série que terá como pano de fundo o kung fu, arte marcial que considera essencial para sua disciplina, equilíbrio, memória e concentração.
Prepare-se, pois “O livro dos prazeres” é mergulho nas próprias feridas como só Clarice Lispector soube descrever.
“O ensinamento desta obra é que o amor é cada um na sua, do seu jeito e com alguma coisa em comum. A alma é ímpar e não gêmea. Esse é o amor possível para Clarice”, finaliza Marcela Lordy.
“O LIVRO DOS PRAZERES”
Brasil, 2020. De Marcela Lordy. Com Simone Spoladore, Javier Drolas e Felipe Rocha. A professora Lóri vive sozinha, dedicada à rotina das aulas e a seu cotidiano monótono. Tudo muda quando ela conhece o professor Ulisses e se depara com o amor. Em cartaz na sala 3 do UNA Cine Belas Artes, às 14h10.