Ainda em vida, o escritor Murilo Rubião (1916-1991) já manifestava o desejo de deixar sua obra e acervo sob os cuidados da sobrinha Sílvia Rubião. Talvez na tentativa de reacender nela o interesse pela carreira de escritora, perdido na adolescência, ou mesmo porque encontrava na filha de seu único irmão as características necessárias de quem cumpre a desafiadora tarefa de preservar a memória e o legado de artistas e escritores nacionais. Portanto, para que não houvesse dúvidas de sua vontade, Murilo deixou um documento escrito, que foi encontrado pela família após sua morte, em setembro de 1991.
Assim, de uma hora para outra, Sílvia viu-se herdeira dos direitos sobre tudo que “Tio Murilo” escreveu e de uma infinidade de livros que compunham a biblioteca do pai do realismo fantástico no Brasil.
Eram tantos exemplares que, ao fim da vida, Rubião morava em um prédio na esquina da Avenida Augusto de Lima com a Rua Espírito Santo, no Centro de Belo Horizonte, e alugava um apartamento a algumas quadras, no Edifício Maletta, somente para guardar os que não cabiam mais em casa.
A enorme biblioteca foi doada para o Acervo de Escritores Mineiros (AEM), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Já as publicações, correspondências com autores contemporâneos, manuscritos e até mesmo as anotações que Rubião fez em uma “Bíblia” – o Antigo Testamento era uma de suas maiores fontes de inspiração – estão reunidos em novo site do escritor, que vai ao ar na quinta-feira (6/10) e poderá ser acessado em murilorubiao.com.br.
A iniciativa é fruto da parceria entre Sílvia e Cleber Cabral, pesquisador do Núcleo de Estudos dos Acervos de Escritores Mineiros e professor da Uninter.
“Existia já um site, criado há cerca de 20 anos, em memória dele (Murilo Rubião). Mas era uma página que estava muito limitada, precisando de atualização”, conta Sílvia. “Nós, então, decidimos criar um novo site, mais completo e com mais informações a respeito do próprio legado do Murilo. Afinal, nesses últimos 20 anos, aconteceu muita coisa relacionada a ele”, acrescenta, referindo-se ao centenário do nascimento do escritor e das inúmeras adaptações que seus contos ganharam para o teatro, o cinema e a televisão.
A nova página conta com vasto material para pesquisadores e fãs do escritor, natural de Carmo de Minas. Além dos materiais que pertenceram a Rubião em vida, o site conta com podcast sobre o autor, biografia, cronologia de sua vida e obra, textos e depoimentos de escritores contemporâneos em homenagem a Murilo.
Maldição e graça
“O pirotécnico Zacarias”, lançado em 1974, é, decerto, a obra mais conhecida de Rubião e a responsável por fazer o escritor mineiro ser conhecido como o precursor do realismo fantástico no Brasil. No entanto, sua produção literária começou muito antes, mais especificamente em 1947, com a publicação de “O ex-mágico”, recusado por grandes editoras e ignorado pela crítica quando publicado pela Editora Universal.
Depois, ele ainda lançou "A estrela vermelha" (1953), "Os dragões e outros contos" (1965) e "O convidado" (1974). Todos igualmente ignorados pela crítica.
“Sempre aceitei a literatura como uma maldição. Poucos momentos de real satisfação ela me deu. Somente quando estou criando uma história sinto prazer. Depois é essa tremenda luta com a palavra, é revirar o texto, elaborar e reelaborar, ir para frente, voltar. Rasgar”, revelou Rubião a J. A. de Granville Ponce, em entrevista introdutória ao “O pirotécnico Zacarias”.
A maldição para o escritor, no entanto, foi uma graça para a literatura brasileira. Afinal, a não ser Kafka na República Tcheca, em 1915, com “A metamorfose”, não se tinham notícias de autores que lançavam mão de elementos narrativos que, beirando ao absurdo, fugiam completamente da ordem natural.
Há quem diga que Joaquim Manuel de Macedo, em “A luneta mágica” (1869), e Machado de Assis, em “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881), precederam o realismo fantástico. No entanto, pelas características de seus romances, pode-se considerar que o que eles fizeram foi apontar para o que, de fato, viria a ser o realismo fantástico por meio de tons figurativos.
Os elementos que fogem da ordem natural nas obras de Rubião estão evidentes no conto “Teleco, o coelhinho”, de “O pirotécnico Zacarias”. Na história, um pequeno coelho manso e delicado interrompe a contemplação do mar pelo narrador, a fim de lhe pedir um cigarro. Ao longo do conto, Teleco vai se transmutando em diferentes animais, que vão refletindo as personalidades que os seres humanos vão assumindo à maneira que são corrompidos pelo próprio mundo até virar “uma criança encardida, sem dentes. Morta”.
Outro conto que também beira o absurdo é “O ex-mágico da Taberna Minhota”, no qual um mágico deprimido não tem nenhum controle de seus “poderes sobrenaturais”.
“Às vezes, sentado em algum café, a olhar cismativamente o povo desfilando na calçada, arrancava do bolso pombos, gaivotas, maritacas. As pessoas que se encontravam nas imediações, julgando intencional o meu gesto, rompiam em estridentes gargalhadas”, narra o mágico no conto de Rubião.
"Por trás da sisudez, de uma discreta gagueira e da economia de gestos,(Murilo Rubião) revelava-se um homem extremamente cordial, bom ouvinte, generoso e com sarcástico senso de humor. Tinha um jeito afetuoso de pôr as mãos nos ombros do interlocutor, coçar o queixo e perguntar com interesse como ia a vida"
Sílvia Rubião, sobrinha e herdeira da obra e acervo de Murilo Rubião
Figura humana
Ainda que Murilo Rubião apresentasse em suas obras humor e imaginação singulares, na vida real, era tímido – embora mantivesse uma vida boêmia. Todos que o conheceram são unânimes ao dizer que era mais retraído na frente dos desconhecidos e um pouco aéreo.
“Por trás da sisudez, de uma discreta gagueira e da economia de gestos, revelava-se um homem extremamente cordial, bom ouvinte, generoso e com sarcástico senso de humor. Tinha um jeito afetuoso de pôr as mãos nos ombros do interlocutor, coçar o queixo e perguntar com interesse como ia a vida”, recorda Sílvia.
Ela ainda conta que “Tio Murilo” era amado, principalmente pelas crianças, porque ele costumava andar com balas nos bolsos, que distribuía aos pequenos que encontravam pelo caminho.
Com os jovens, sobretudo os aspirantes a escritores que tentavam emplacar algum texto no Suplemento Literário, dirigido por Rubião, o escritor assumia um papel de mentor, dando conselhos, dicas de leitura e críticas construtivas.
Adido cultural
Já no segmento cultural, assumiu um papel de extrema relevância, mas que ainda não existia em sua época: secretário de Cultura. “Não existia esse cargo, mas, levando em consideração o que ele fez, seria o equivalente ao que um secretário de Cultura, tanto na esfera municipal quanto na estadual, faz nos dias de hoje”, destaca Sílvia.
Embora tenha contos nos quais tece críticas contundentes ao funcionalismo público, Rubião fez carreira assessorando nomes importantes da política, como Juscelino Kubitschek e João Beraldo. Foi ainda chefe do Escritório de Propaganda e Expansão Comercial do Brasil, em Madri, e adido cultural junto à embaixada do Brasil na Espanha.
Como jornalista, iniciou como redator da Folha de Minas, tornou-se diretor da Rádio Inconfidência e posteriormente do Suplemento Literário de Minas Gerais, considerado até hoje como um dos melhores órgãos de imprensa cultural do país.
Recebeu diversas homenagens ainda em vida, nas quais sempre fez questão de comparecer. Só faltou na primeira edição do Projeto Memória Viva, que contou com a exposição “Murilo Rubião, construtor do absurdo”, no Palácio das Artes. Foi impedido de ir. Havia morrido quatro dias antes, em “uma manhã sombria do dia 16 de setembro, dia do meu aniversário”, conforme recorda Sílvia.