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Diretora expõe 'barreira no coração dos japoneses' em longa sensível


O Japão recebe milhares de pedidos de asilo político todos os anos, mas é difícil encontrar um lugar em que o número de refugiados aceitos pela imigração passe de algumas dezenas.





Se o país, por um lado, recebeu mais de 300 fugitivos da Ucrânia no início deste ano, graças a uma aproximação com os Estados Unidos, só 74 pessoas foram reconhecidas como refugiadas no ano passado, de um total de 2.413 pedidos.

O montante é bem menor do que na comparação com 2018, antes da pandemia, quando 10.493 pessoas tentaram, mas só 42 receberam esse status. Foi nesse mesmo ano que a cineasta Emma Kawawada começou a ver de perto a situação preocupante dos mais de 2 mil curdos que vivem hoje no seu país à espera de um visto.

"Fui entrevistar várias famílias e conversei principalmente com jovens entre 10 e 20 anos, e eles se perguntavam: 'A que lugar eu pertenço?'", diz a diretora, que dedicou dois anos de pesquisa para fazer o singelo "Minha pequena terra", premiado no Festival de Berlim e agora disponível no streaming Belas Artes à La Carte.





A jovem curda Sarya, vivida pela iniciante Lina Arashi – de ascendência alemã, iraniana, russa e japonesa –, é o vetor dessas angústias.

Barreira 

Ela, de 17 anos, e sua família vivem com razoável tranquilidade no país com uma licença provisória, até que após anos de espera – com a garota já fluente em japonês, prestes a tentar uma universidade e com os hormônios à flor da pele – o Japão nega o pedido de asilo de seu pai, perseguido na Turquia.

"Existe uma barreira no coração dos japoneses que os impede de aceitar outras etnias no seu próprio país, e isso se reflete na política", afirma Kawawada, numa resposta branda demais frente à dureza do seu próprio filme. É uma relação, diz ela, bem diferente do "omotenashi" – o ímpeto de hospitalidade – que os japoneses demonstram com turistas, por exemplo.

Afinal, com o visto negado, o pai de Sarya é impedido de trabalhar e a família não tem permissão nem para transitar para outro distrito. A recomendação do advogado que os acompanha é não sair de casa até que o governo revise a decisão – o que pode demorar indefinidamente. O resultado não poderia ser outro: o homem acaba preso tentando buscar o sustento para os três filhos.





Sem o pai, Sarya, sua irmã adolescente e o irmão ainda pequeno têm de se virar como podem, morando de aluguel nos fundos de uma lavanderia. Daí a jovem terá de assumir as rédeas da casa, ao mesmo tempo em que se sobrecarrega ajudando seus conterrâneos e se apaixona por um colega do mercadinho onde trabalha, papel de Daiken Okudaira, que vai inspirar nela sonhos impossíveis.

Influência 

O longa deve agradar a quem aprecia o estilo delicado, e às vezes acadêmico, de Hirokazu Kore-eda, vencedor da Palma de Ouro por "Assunto de família", de 2019. Não é uma comparação infundada – Kawawada foi assistente dele nas filmagens de "O terceiro assassinato", um frenético filme de tribunal, um pouco diferente das crônicas da vida em família que está acostumado a fazer.

"O Kore-eda fez entrevistas minuciosas e refletia muito sobre como conduzir o filme, isso me influenciou muito", diz a diretora, que preferiu apostar numa ficção a fazer um documentário que poderia passar despercebido, mesmo com um assunto que alfineta o Japão. Afinal, o alcance do drama serviu de alerta para a população desavisada.





A diretora até cogitou chamar imigrantes para viver os personagens reais, mas ficou com medo de que a exposição prejudicasse a permanência deles no país. Em vez disso, escalou Arashi e seus parentes de verdade, todos não atores, para dar um tom mais natural à família.

É uma técnica que não costuma decepcionar, e aqui não é diferente, já que o filme aposta todas as suas fichas no carisma desses personagens unidos pelo sangue.

Os curdos, como se sabe, são apátridas por natureza, mesmo somando uma população de 40 milhões de pessoas espalhadas pelo mundo. Mas Sarya, mesmo respeitando seu pai, não concorda com a tradição de casamentos arranjados, comuns na sua cultura, e tem de se esquivar como pode para se sentir japonesa.

"Há uma tradição curda de pintar um círculo vermelho na mão das mulheres em casamentos. Por coincidência, remete à bandeira do Japão, mas, antes, reforça que é algo do qual ela não consegue fugir", afirma a cineasta, que dá novos sentidos à cor ao longo do filme.





Por outro lado, o crachá que usa no trabalho, com seu nome escrito em "katakana", o alfabeto para palavras estrangeiras, e os traços físicos denotam para os japoneses que ela é uma estranha. Já quando ela se sujeita a ser acompanhante de um homem mais velho num karaokê, Sarya vê com nojo como esse exotismo se reverte em fetiche.

Apesar disso, o final é, de alguma forma, feliz – bem diferente da realidade que Kawawada viu. "Nenhuma das pessoas que entrevistei conseguiu ser admitida e permanece na liberação provisória. O problema é que muitas pessoas nem sequer podem voltar para seu país, é muito perigoso. E eles continuam tentando e tentando conseguir essa permissão."

“MINHA PEQUENA TERRA”

(Japão, 2022) Direção: Emma Kawawada. Disponível no Belas Artes à La Carte