Na visão da escritora norueguesa Vigdis Hjorth, "é falha a crença de que memórias familiares são vividas e lembradas da mesma forma por todos".
Em "Herança e testamento", seu primeiro livro traduzido no Brasil pela HarperCollins, a protagonista Bergljot revive o trauma de um abuso sexual perpetrado pelo próprio pai durante a infância e carrega o peso de repetir e repetir a própria história, sem ser ouvida pela mãe e pelas irmãs, o ponto-chave do livro.
"É tentador acreditar no pai. Se você acreditar na filha, você pode comemorar o Natal como antes? A mãe continua casada? Você conta para a vizinhança? Se você acredita no pai, você salva a família. A consequência é perder uma filha, uma irmã. É uma perda menor que perder a família", diz Hjorth, em entrevista.
A história já seria pesada em si. O drama que envolve a publicação do livro na Noruega piora o clima. Hjorth engrossa o coro dos escritores notórios pelo desafeto familiar causado por suas obras. Na esteira de Karl Ove Knausgård, "Herança e testamento" angariou tentativas de processo da mãe e até um livro em resposta de uma das irmãs, em reação similar ao de uma das ex-mulheres de Knausgård.
Bergljot é uma mulher norueguesa de meia-idade, com filhos e netos, que trabalha como editora de uma revista de teatro. Os pais dela haviam feito um testamento, em vida, dando casas de veraneio a Astrid e Asa, as filhas mais jovens, e compensando o primogênito Bard com uma quantia em dinheiro -que, avaliam eles, era inferior ao preço de mercado dos chalés, motivo de rusgas entre os irmãos e pais.
Ruptura familiar
Com a morte do pai, a herança e o testamento voltam à tona, junto com os traumas da narradora. A obra carrega similaridades com a vida de Hjorth. Ela, porém, insiste em não caracterizar o livro como biografia ou autoficção, mas como romance. "Eu nunca disse que isso era a realidade", afirma. "Autores sempre usaram a própria história, isso não é novo."
Os méritos da obra de Hjorth vão além da fofoca. "Herança e testamento" foi premiado na Noruega e cotado para o National Book Awards de 2019. Não à toa. A narração do longo e difícil processo de identificação de abuso sexual na infância por uma vítima que suprimiu as memórias do crime é magistral.
Em capítulos curtos, Bergljot dá saltos no tempo e mistura sonhos e flashbacks com a realidade corrente para explicar sua história. Do conflito e ruptura familiar ao casamento precoce e separação, movida por uma infidelidade, ela demora a nomear a causa de sua ruptura com a família.
Ao leitor, sobram pistas. "Minha filha completou 5 anos, e eu achei que o pai dela entrava no quarto dela à noite", escreve Hjorth. "Eu disse que cogitava fazer terapia, então meu pai me rechaçou no tom mais brusco dele, aquele que todos da família, sobretudo minha mãe, temiam: Você não vai fazer terapia alguma!"
"Leva tanto tempo para dizer as palavras 'abuso sexual'. Leva muito tempo para admitir, porque é muito ruim e você não quer acreditar. Para entender o crime, você precisa de muita conversa, de muita terapia", diz Hjorth. "Vivemos o processo junto com Bergljot."
Horas de dor
Ela é surpreendida pelo reconhecimento do abuso sofrido. E relata cinco episódios de três horas de dor, uma "dor total" que a deixava deitada, sem conseguir se mover, e depois passava. Ao estudar o que fazia antes dos episódios, constatou que trabalhava em um ato de uma peça. Ela, então, verifica o que escreveu.
"Bergljot é um ser humano que está lendo e escrevendo. São dois processos que a ajudaram a entender, ela lembra. Ao reler, ela precisa de terapia, para carregar o fardo do que ela escreveu", diz Hjorth. A narradora, depois de escrever para psicanalistas, é aceita por um programa do Estado norueguês que a qualifica para quatro sessões semanais de psicanálise, por tempo indeterminado.
Mais do que um livro sobre abuso, é um livro sobre a narrativa das vítimas que não foram ouvidas. "Bergljot contou para a mãe dela e para Astrid, mas sempre bêbada ou histérica. Mais tarde, no livro, na leitura do testamento, ela diz calmamente pela primeira vez", afirma Hjorth. Bard, o primogênito, é o único que simpatiza com a história da irmã. Ele mesmo foi vítima de agressões do pai, histórias também desqualificadas pela família.
Hjorth não simplifica em maniqueísmos o abuso sofrido pela narradora. Depois dos dois anos de estupro, Bergljot ocupou posto de favoritismo entre as irmãs. Seus pais pagavam aulas de dança e piano, e a mãe a vigiava como uma águia. Culpa, supõe a protagonista.
Freud
Em uma tacada freudiana, e controversa, Bergljot admite invejar a mãe, dona dos afetos do pai, que, depois dos 7 anos da criança, não encostou mais nela. Ela perdoa o abusador com mais facilidade do que a matriarca. O pai aceita a ruptura.
"A mãe, por outro lado, insiste que a família está normal. Ela é a que está forçando Bergljot a ir para o Natal", diz Hjorth. "Não é possível perdoar aquilo que não foi admitido!"
HERANÇA E TESTAMENTO
De Vigdis Hjorth. Editora HarperCollins. Tradução Kris Garubo. Preço R$ 64,90