Realizado por Clarissa Campolina e Luiz Pretti, o filme “Enquanto estamos aqui”, que estreia nesta quinta-feira (6/10) em Belo Horizonte e em outras quatro capitais do país, resulta de um percurso poético que parte do íntimo e particular para o coletivo e global. O cerne da história é a questão das migrações, das fronteiras, das diferenças culturais e dos entendimentos possíveis entre elas.
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Residência na Alemanha
Não necessariamente há uma correspondência objetiva entre o que o espectador vê na tela e a história que é contada. Esse formato deve-se, em boa medida, ao próprio processo de realização da obra. Pretti explica que tudo começou em 2015, quando Clarissa foi fazer uma residência artística na Alemanha.
“O filme nasce de um desejo de filmarmos Berlim, onde estávamos morando, para que pudéssemos, através dessa filmagem, entender nosso lugar enquanto migrantes. A ideia era fazer uma investigação sobre a cidade, que, na ocasião, estava passando por uma crise de imigração, por conta da guerra na Síria, com um fluxo imenso de refugiados se espalhando por toda a Europa, que estava começando a fechar as portas”, diz.
Ele sublinha que não havia ainda o projeto de um filme. Clarissa pontua que o início dessa jornada, a princípio de escopo familiar, foi um acontecimento fortuito. “Estávamos numa praça com o Theo e ele foi andando em direção a outras crianças, só que, em vez de brincar, se escondeu embaixo do escorregador para observar os meninos e ficou ali naquele limite entre tentar entender o que estava acontecendo e, ao mesmo tempo, não ser visto”, recorda.
Dentro e fora
Segundo longa-metragem da cineasta, que estreou no formato em 2011, com “Girimunho”, em codireção com Helvécio Marins Jr., “Enquanto estamos aqui” explora, conforme ela aponta, a sensação de estar em um lugar e, ao mesmo tempo, se sentir fora dele. Pretti conta que só com o tempo veio a percepção de que as imagens que haviam capturado eram o esboço de um filme.
“Aos poucos, entendemos que para sair de uma esfera íntima e pensar sobre aquele material como história e narrativa, seria necessário imaginar e escrever um roteiro. Trouxemos a narrativa para as vozes dos personagens e mantivemos as paisagens como palco para essa história”, destaca o diretor.
O casal imaginou, então, os personagens Lamis e Wilson para que conduzissem uma narrativa que trata do encontro de culturas diferentes e de como essas culturas podem se relacionar, apesar das diferenças, das divisões geográficas, dos muros. “Quisemos falar do encontro com o outro e do convívio com as diferenças”, aponta Pretti. “No final das contas, é uma história de amor”, acrescenta.
Clarissa observa que não houve uma hierarquia no processo de realização do longa. As filmagens, a escrita do roteiro, a montagem e a seleção de imagens de arquivo foram feitas, quase sempre, de forma concomitante, sem que uma estivesse necessariamente condicionada a outra.
“No início, a gente não sabia o que o filme seria. Ele foi muito feito na sala de montagem, a partir do que o mundo nos entregava. A gente ia elaborando conforme as coisas iam acontecendo”, diz. Ela ressalta que apenas tinham o desejo de que não fosse nem um documentário nem uma espécie de álbum de família. “Por isso criamos os personagens”, salienta.
A cineasta conta que, depois que voltaram de Berlim para o Brasil, surgiu a oportunidade de uma outra residência artística, desta feita em Nova York, onde ela já havia morado em 2003. “A gente vinha trabalhando texto e imagem meio que ao mesmo tempo. Percebemos que os registros que havíamos feito em Berlim dialogavam com imagens de Nova York, de quando eu tinha morado lá”, conta.
Imagens de arquivo
Clarissa destaca que a proporção de imagens de arquivo e imagens feitas com a intenção do filme é de aproximadamente 30% e 70%. “Nos valemos de coisas que eu já tinha, mas também dirigimos muito. Na medida em que íamos escrevendo o texto, pensávamos em que tipo de imagem precisaríamos”, aponta.
Pretti observa que as filmagens realizadas em Berlim não só deram o rumo para uma seleção de arquivos como levaram a novos registros, tanto em Nova York quanto na cidade alemã, para onde o casal retornou em 2018. A produção contou ainda com a colaboração de Rodrigo Fisher, que, além de atuar como um dos narradores, realizou filmagens complementares.
“Ele estava morando em Nova York. Nós, daqui, fazíamos testes na ilha de montagem, víamos o que funcionava e o orientávamos sobre o que mais filmar. Ele, de lá, ia nos enviando imagens. O processo de filmagem, montagem e escrita do roteiro foi conjunto”, comenta.
A dissociação entre a história contada – por meio dos diálogos e reflexões dos personagens e de uma narração onisciente, a cargo de Grace Passô – e as imagens projetadas é tamanha que Lamis e Wilson praticamente não aparecem. “É uma opção que faz parte do próprio processo de realização do filme”, pontua Pretti.
Clarissa diz acreditar em uma montagem que seja criativa, no sentido de deixar espaço para que o espectador se coloque na história. “Acho interessante quando a gente consegue, a partir do encontro do texto com a imagem e com a trilha, sugerir uma outra sensação que não está necessariamente no texto e nem na imagem. É como se fosse um estímulo para se ampliar os sentidos da compreensão”, ressalta.
Marcelo Souza e Silva é ator, integrante da Cia. Luna Lunera, e já participou de filmes como “Baixo centro” (2018), de Ewerton Belico e Samuel Marotta. Já Mary Gatthas é uma jovem refugiada sírio-libanesa que vive em Belo Horizonte, cujas experiências foram adicionadas ao filme, somando novas camadas à personagem.
Migrantes e refugiados
Pretti explica que a produção chegou à escalação de Lamis por meio de pesquisas e testes em Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. A dupla de diretores visitou centros de migrantes e refugiados e também locais de encontro da comunidade sírio-libanesa nas três capitais.
“Pedíamos às pessoas que encontrávamos que fizessem a leitura de um texto, porque já sabíamos que o filme seria guiado por vozes. Quando Mary chegou, foi muito forte; sentimos que ela tinha uma voz muito especial, com uma vivência intrínseca, como se já trouxesse a história de vida de alguém que teve que sair de seu país para morar em outro lugar”, diz.
“Discutimos com ela todo o roteiro, a maneira como as cartas que compõem o texto eram escritas, e como a história da personagem se relaciona com a dela própria”, salienta o diretor. Com relação à escolha do intérprete de Wilson, Pretti aponta que se deveu a uma admiração antiga. “Eu conheci Marcelo quando fiz a montagem de ‘Baixo centro’. Já me chamava a atenção a força da voz dele, o domínio que ele tem do tempo, das pausas”, conta.
Narração de Grace Passô
A presença de Grace Passô como a narradora que conduz a trama também se deu pela admiração dos cineastas por seu trabalho com a voz. “A gente entendeu que, para que a história pudesse ser contada, era preciso essa voz externa, mais sóbria, que acompanhasse ambos os personagens e se diferenciasse deles. Grace tem um trabalho com a voz muito forte tanto no teatro quanto no cinema”, aponta.
Pretti diz que a referência para esse modelo narrativo foi Marguerite Duras, escritora e diretora francesa que sempre trabalhou muito com a voz em off em seus filmes. Ele aponta que as citações literárias ou ensaísticas são um terceiro elemento do filme.
“Elas ampliam para um contexto político e social maior do que a história particular dos dois personagens, tratando, por exemplo, da expansão do capitalismo ou dos muros que dividem o mundo atual. É uma forma de falar do universo e da situação dos personagens inseridos na realidade, em uma história coletiva, que é de todos nós”, ressalta.
Recepção positiva em festivais
“Enquanto estamos aqui” fez sua estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Roterdã e também já foi exibido em Nova York. No Brasil, teve sessões na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e no Olhar de Cinema, em Curitiba. “A recepção tem sido muito legal”, diz Clarissa.
“Em Roterdã foi muito forte, porque foi a estreia; e em Nova York, no Lincoln Center, também foi muito especial, porque foi acompanhada por muitas pessoas que viveram, vivem ou conhecem pessoas que viveram situações parecidas com a que é retratada no filme”, comenta a cineasta.
“ENQUANTO ESTAMOS AQUI”
(Brasil, 2019. 77 min.) Direção: , de Clarissa Campolina e Luiz Pretti. Com Marcelo Souza e Silva, Mary Gatthas e Grace Passô (voz). Classificação: 12 anos. Em cartaz a partir desta quinta no Centro Cultural Unimed-BH Minas Tênis Clube (Sala 1, às 18h10) e no UNA Cine Belas Artes (sala 3, às 18h30).