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Estado de Minas LITERATURA

Vencedora do Nobel vendeu 20 mil livros no Brasil e virá para a Flip

Reconhecida por entrelaçar suas memórias íntimas com as circunstâncias de seu país, a francesa Annie Ernaux é a 17ª mulher a vencer o prêmio da Academia Sueca


07/10/2022 04:00 - atualizado 06/10/2022 23:05
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Walter Porto/Folhapress e AFP

Com casaco preto, Annie Ernaux ergue as mãos e sorri, sentada à mesa onde estão diversos microfones apontados em sua direção
Annie Ernaux virá ao Brasil no mês que vem, como convidada da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). Acima, ela conversa com a imprensa sobre sua vitória, na sede da editora Gallimard, em Paris (foto: JULIEN DE ROSA / AFP)


A "coragem e acuidade clínica pela qual desvenda as raízes, as estranhezas e constrangimentos coletivos ligados à memória pessoal", conforme descreveu a Academia Sueca, valeram à francesa Annie Ernaux, de 82 anos, o Prêmio Nobel de Literatura deste ano, anunciado na quinta-feira (6/10).

A Editora Fósforo publica os livros da autora no Brasil desde o ano passado e a trará ao país como a maior presença confirmada na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no próximo mês.

Ernaux é considerada pioneira no estilo da autoficção, um tipo de literatura que se espraia cada vez mais pelo mundo e agora é consagrada pelo Nobel. A leitura da obra da francesa vem sendo alavancada por títulos cada vez mais populares, como "O lugar", "Os anos" e "O acontecimento".

Seus livros contam histórias autobiográficas ao mesmo tempo em que refletem sobre o contexto social em que foram escritas – Ernaux é filha de um comerciante pobre na região rural da França e saiu de casa para estudar letras e se formar professora na Universidade de Rouen – e sobre o próprio processo de revirar sua vida para vasculhar memórias.

São obras que ficam no limiar entre a ficção e o relato documental, investigando até onde as lembranças são meios confiáveis de narrativa – o quanto elas podem trair seus autores ou fazê-los escorregar em vieses.

A etnóloga

No discurso que anunciou a decisão, a Academia Sueca citou uma das mais famosas autodefinições da escritora, que costuma dizer que, em vez de autora de ficção, é uma "etnóloga de si mesma", celebrando sua capacidade de misturar experiências pessoais e coletivas.

A estreia de Ernaux nas prateleiras do país foi pela editora Três Estrelas, com "Os anos", livro de maior abrangência publicado até aqui por uma autora que preza pela concisão.

A obra voltou às lojas com a abertura da Fósforo – a francesa estava na primeira leva de publicações da então editora estreante –, que trouxe "O lugar" quase em simultâneo e, este ano, também publicou "O acontecimento" e "A vergonha".

Antes da Flip, planeja lançar "O jovem", livro mais recente da autora, em que ela narra um caso com um homem 30 anos mais novo.

"Ernaux já vivia um momento muito bom no exterior quando a compramos", diz a editora Rita Mattar, sócia de Fernanda Diamant na Fósforo e responsável por publicar a francesa nas duas editoras. "Li por indicação de outros editores estrangeiros e senti que falava muito à sensibilidade brasileira, sobre a ascensão social por meio do estudo."

O palpite de Mattar se confirmou "razoavelmente cedo", segundo ela, que já vendeu quase 20 mil exemplares de livros físicos e virtuais da autora – o mais popular até agora é "O lugar". O plano da Fósforo é publicar a obra completa de Ernaux nos próximos anos.

"É uma linguagem pouco sentimental, mas o conteúdo emociona muito as pessoas, que se comovem e viram fãs. Querem ir atrás de outro livro e depois outro, com vontade de falar das próprias experiências."

"O acontecimento" também repercutiu como obra cinematográfica. A adaptação dirigida pela francesa Audrey Diwan foi premiada com o Leão de Ouro no Festival de Veneza e passou nos cinemas brasileiros em junho passado, a partir do Festival Varilux.

O livro remexe em tabus sem fazer concessões, ao narrar um aborto ilegal realizado pela escritora quando era uma jovem universitária. A obra escancara o abandono sentido por uma garota que enfrenta sozinha um dos processos mais difíceis de sua vida e entrelaça com destreza o misto de culpa e libertação envolvido na decisão de abortar.

Cineasta e documentarista

A Mostra de Cinema de São Paulo também está prestes a apresentar outra vertente da autoficção de Ernaux, desta vez como cineasta. O documentário "Os anos Super-8", que ela dirigiu ao lado do filho David e foi exibido no Festival de Cannes, terá estreia oficial no país no evento, que ocorre ainda este mês.

Os portais de apostas ao Nobel mostravam, nos últimos dias, um panorama com os suspeitos de sempre, como o queniano Ngugi wa Thiong'o, a canadense Anne Carson, o japonês Haruki Murakami, o francês Michel Houellebecq e o anglo-indiano Sal- man Rushdie.

Outros nomes que vinham ascendendo eram o da guadalupense Maryse Condé e da americana Jamaica Kincaid. Uma dessas duas, caso escolhida, seria apenas a segunda mulher negra na história a vencer o prêmio, após a vitória de Toni Morrison, em 1993.

Ernaux é a 17ª mulher premiada em mais de 120 anos de Nobel de Literatura – e a primeira francesa a vencer o prêmio, que esnobou autoras centrais do século 20, como Marguerite Duras e Simone de Beauvoir, mesmo abrindo espaço para 14 homens do país, o mais lembrado na premiação.

O presidente francês, Emmanuel Macron, saudou a entrega do Prêmio Nobel a Annie Ernaux, segundo ele "a voz da liberdade das mulheres e dos esquecidos do século". Ela "escreve, há 50 anos, o romance da memória coletiva e íntima do nosso país", disse.

Os últimos anos foram marcados por surpresas nas escolhas do comitê sueco, que vinha selecionando nomes que não eram aventados por quase ninguém e que tinham pouca projeção no Brasil. A coisa muda de figura agora com Ernaux.

O tanzaniano Abdulrazak Gurnah, um expoente da literatura pós-colonial que começou a ser publicado no país no primeiro semestre deste ano com "Sobrevidas" (Companhia das Letras), era um completo desconhecido por aqui até então.

Em 2020, a poeta americana Louise Glück, também nunca editada por estas terras antes do Nobel, foi a encarregada de desbancar os favoritos da vez. Desde então, a mesma editora publicou uma antologia robusta e o livro mais recente da escritora.

As escolhas desses autores menos polêmicos encerraram anos atribulados para a Academia Sueca, que viu um escândalo de assédio sexual derrubar membros de seus quadros, culminando na suspensão do prêmio em 2018. Em compensação, no ano seguinte, foram eleitos dois vencedores, a polonesa Olga Tokarczuk e o austríaco Peter Handke.

A Academia seleciona desde 1901 o vencedor do Nobel de Literatura, numa iniciativa que, no começo, era um meio de promover a cultura escandinava – com algumas interrupções, o prêmio já laureou 119 pessoas. Hoje, o escolhido ganha uma bolada de 10 milhões de coroas suecas, ou pouco menos de R$ 5 milhões. 

CLUBE LITERÁRIO

Confira os últimos 10 vencedores do Nobel de Literatura

2022 Annie Ernaux (França)
2021 Abdulrazak Gurnah (Tanzânia)
2020 Louise Glück (EUA)
2019 Peter Handke (Áustria)
2018 Olga Tokarczuk (Polônia)  
2017 Kazuo Ishiguro (Reino Unido)
2016 Bob Dylan (EUA)
2015 Svetlana Alexijevich (Bielorrússia)
2014 Patrick Modiano (França)
2013 Alice Munro (Canadá)
 


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