Jornal Estado de Minas

MÚSICA

'AntroPOPhagia' tem apresentação gratuita, neste sábado (8/10), em BH

Daniel Barbosa

O Grande Teatro do Palácio das Artes recebe, neste sábado (8/10), como parte do programa O Modernismo em Minas Gerais, o show “AntroPOPhagia”, de Beatriz Azevedo, com entrada franca e participações de Moreno Veloso e Jaques Morelenbaum. Inédito em Belo Horizonte, o espetáculo, que também transita entre a literatura e as artes cênicas, deriva de um álbum homônimo, gravado ao vivo e lançado em 2014.





As músicas registradas no disco, que compõem o roteiro da apresentação, foram criadas a partir da obra dos escritores modernistas Oswald de Andrade (“Erro de português”, “Cântico dos cânticos” e “Relicário”) e Raul Bopp (“Coco de Pagu”). Somam-se a esses temas composições de Beatriz em parcerias com Vinicius Cantuária e Angelo Ursini, entre outros, e releituras de “What is this thing called love”, de Cole Porter, “Speak low”, de Kurt Weill, e “Insensatez”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes.

A artista, que também atua nas áreas da poesia e da performance, e desenvolve, há anos, um trabalho acadêmico em torno do modernismo, explica que “AntroPOPhagia” nasceu a partir de um convite do Lincoln Center, de Nova York, para que criasse um trabalho inédito para estrear em um de seus palcos, o Walter Reade Theater.

“Eles me fizeram esse convite, o que chamam lá de ‘commission’, para uma criação livre, com tema aberto. Eu teria um ano para desenvolver esse trabalho, e como já estava envolvida na pesquisa em torno da antropofagia, da obra do Oswald de Andrade, que alimenta tanto minha carreira artística quanto minha trajetória acadêmica, propus esse show, ‘AntroPOPhagia’, com o pop em caixa-alta”, conta Beatriz.




Foco na antropofagia

Ela chama a atenção para o fato de que o foco do projeto não é a Semana de Arte Moderna de 1922, mas o “Manifesto antropofágico”, de Oswald, e a criação da Revista de Antropofagia, em 1928, bem como os trabalhos das figuras que orbitaram aquelas publicações – Raul Bopp, Tarsila do Amaral, Oswaldo Costa e Patrícia Galvão, a Pagu.

“Quis desenvolver o trabalho em torno dessa turma, que aprofundou e radicalizou posturas estéticas em relação à Semana de 22. Acho que o ano de 1928 é muito mais importante artística, política e esteticamente do que 1922”, aponta.

A partir de quando Beatriz trouxe o show para o Brasil – onde foi apresentado no Sesc Pompéia, em São Paulo, na Caixa Cultural, em Brasília, e em unidades do CCBB – é que Moreno Veloso e Jaques Morelenbaum embarcaram no projeto, assim como Cristóvão Bastos (piano) e Jorge Helder (baixo), que depois foram cuidar de outros compromissos. Helder está na banda que acompanha Chico Buarque na turnê “Que tal um samba?”, que tem apresentações neste sábado e domingo, no Minascentro.




Formação no palco

A banda que ocupa hoje o palco do Grande Teatro do Palácio das Artes é formada por Antonio Guerra (piano e acordeom), André Siqueira Campos (bateria e percussão) e Gabriel Loddo (baixo e cavaquinho), além de Moreno (violão, voz e prato), Morelenbaum (violoncelo) e Beatriz (voz e violão).

O percurso que o show cumpriu desde sua estreia, no Lincoln Center, onde o álbum ao vivo foi gravado, teve algumas pequenas interrupções. Uma delas foi em 2016, quando Beatriz defendeu a tese de doutorado que desembocou no livro “Antropofagia palimpsesto selvagem”, lançado pela Editora Cosac & Naif. Ela recorda que foi um processo que a absorveu muito.

“Esse livro teve o prefácio assinado por Eduardo Viveiros de Castro, que é um dos intelectuais brasileiros mais respeitados do mundo. O fato de ele ter lido minha tese e escrito um texto muito contundente, falando da importância do trabalho que eu vinha fazendo, fez com que o livro reverberasse. As edições se esgotaram em dois meses e até hoje ele é meio que raridade. Vi outro dia na internet uma edição original sendo vendida a R$ 800”, conta.




Espetáculo reativado

Ela diz que, com a repercussão do livro, começou a receber convites para promover o lançamento juntamente com o show “AntroPOPhagia”. Assim, o espetáculo “renasceu”, segundo a artista, e voltou a circular até 2018, quando foi novamente suspenso em razão de outros projetos com os quais Beatriz estava às voltas.

“Por conta do centenário da Semana de 22 é que voltei, agora, a receber convites para apresentar esse show, como esse feito pelo Palácio das Artes, que me deixou muito feliz”, diz a artista, que está radicada nos Estados Unidos, cumprindo, até o próximo ano, um período de residência na Universidade de Nova York.

Sobre o repertório de “AntroPOPhagia”, ela diz que, mesmo as músicas que não foram criadas a partir dos textos de Oswald de Andrade e Raul Bopp estabelecem um diálogo com as premissas do “Manifesto antropofágico” ou com o momento em que foi escrito, sob inspiração do quadro “Abaporu”, pintado por Tarsila, também em 1928.




Maxixe e lundu

“Compus com o Vinícius Cantuária, por exemplo, uma música chamada ‘Alegria’ que bebe do maxixe, um ritmo que nas décadas de 1920 e 1930 era muito popular, assim como o lundu. Eram danças muito disseminadas em 1928. Além disso, a ‘alegria’ é central na filosofia antropofágica. Oswald repetia muito a frase ‘a alegria é a prova dos nove, a transformação permanente do tabu’, então tem tudo a ver”, aponta.

Ela argumenta, ainda, a respeito da inclusão dos temas de Cole Porter e Kurt Weill, que “Oswald era um cidadão do mundo, um sujeito viajado, que gostava de jazz”. Para “What is this thing called love”, Beatriz fez uma versão em ritmo de lundu, e “Speak low” ganhou uma levada de maracatu.

“Quando nos apresentamos no palco do Lincoln Center, o público ficou impactado. Entramos descalços, com os rostos pintados de urucum, feito pelo Urutau Guajajara, uma liderança indígena do Rio de Janeiro, e cantamos em ritmos afro-brasileiros esses clássicos da música norte-americana. Rever standarts do jazz com componentes brasileiros é um gesto antropofágico, totalmente alinhado com os ideais do ‘Manifesto’. O repertório todo é pensado com esse direcionamento”, ressalta.




Projetos cruzados

O “AntroPOPhagia” que o público de Belo Horizonte irá ver já não é o mesmo que circulou até 2018. O projeto foi atravessado por outro, desenvolvido por Beatriz em parceria com Moreno a partir daquele ano, em torno da obra de Clarice Lispector. Ela conta que, quando recebeu o convite para trazer “AntroPOPhagia” para a cidade, resolveu fazer um híbrido, incluindo temas registrados no álbum “Clarice Clarão”, lançado em agosto deste ano.

A artista explica que o projeto que resultou no recém-lançado disco também surgiu por meio de um convite. “Costumo dizer que foi um presente, porque estávamos aqui no Brasil entre 2018 e 2019, vivendo um momento muito difícil politicamente, com os artistas sendo atacados, o Ministério da Cultura extinto, quando veio um convite da Princeton University, de Nova Jersey, para que eu criasse um trabalho em torno da obra de Clarice Lispector, por conta do centenário dela”, recorda.

Ela conta que se reuniu com Moreno para conversar sobre o que poderiam desenvolver. “A gente adora cantar juntos, a gente adora literatura, a gente se adora, então é muito prazeroso criar ao lado dele”, diz. A dupla, então, compôs, juntamente com outros músicos, 11 temas que dialogam com trechos da obra da célebre escritora para um espetáculo que seria apresentado na universidade de Nova Jersey, em 2020.





“A Princeton ia realizar um congresso sobre Clarice em abril e a ideia é que estivéssemos incluídos na programação. Organizaram tudo, compraram as passagens, construímos uma agenda com outros shows em Nova York e aí veio a pandemia”, relembra.

Registro audiovisual

Ela diz que o evento foi transferido para dezembro e readequado para o formato on-line. Com isso, a dupla, acompanhada por Jaques Morelenbaum e pelo percussionista Marcelo Costa, foi para os estúdios da gravadora Biscoito Fino realizar o registro audiovisual que seria apresentado no congresso e que acabou batizado como “Now Clarice”. A artista diz que a apresentação foi assistida por um público de 10 mil pessoas.

Com o sucesso da empreitada, surgiu, em 2021, a proposta do Sesc São Paulo de gravação de um documentário para a programação da TV Sesc, e de um álbum. “Topamos, começamos a soltar singles, clipes, e esse processo culminou com o lançamento do disco, em agosto passado. É um trabalho muito bonito, que tem uma participação gloriosa de Maria Bethânia. Ela, que tem muita intimidade com a obra de Clarice, interpreta alguns textos”, diz.




 
O álbum foi batizado com o título de uma das faixas. “Compus essa música inédita porque senti o peso da pandemia e do obscurantismo vigorando no país, com esse retrocesso político, e a Clarice foi um clarão no meio disso tudo. Ela nos iluminou durante esse período”, explica, observando que o trabalho gerou um espetáculo próprio, que já foi apresentado em São Paulo e em Campinas.

Clarice Lispector e os modernistas

Beatriz considera procedente juntar Clarice aos modernistas ligados à Revista de Antropofagia, porque eles representam uma linhagem. “Se não fosse Oswald, Mário de Andrade, Drummond, Manuel Bandeira, talvez não fosse possível Clarice lançar os livros que lançou. Os escritores que despontaram a partir do Modernismo abriram a possibilidade para que a linguagem ousada, profunda e poética de Clarice pudesse existir e ser bem recebida”, avalia.

“AntroPOPhagia” tem, ainda, uma outra camada de vínculo com o pensamento e as posturas modernistas, segundo Beatriz, que está expressa nos rostos pintados com urucum. Ela diz ter uma profunda conexão com os povos indígenas, dos quais Os- wald fazia uma defesa enfática, conforme observa. 





“Tenho um amor profundo por esses povos, luto por essa causa, e, enquanto artista, isso é algo que me inspira há muitos anos. ‘AntroPOPhagia’ é profundamente ligado aos conhecimentos dos povos originários”, ressalta.


“ANTROPOPHAGIA”

Show de Beatriz Azevedo, com participações especiais de Moreno Veloso e Jaques Morelenbaum, neste sábado (8/10), às 21h, no Grande Teatro do Palácio das Artes 
(Av. Afonso Pena, 1.537, Centro, 31.3236-7400). Entrada franca, com retirada de ingressos pelo site da Fundação Clóvis Salgado ou na bilheteria do Palácio das Artes