Daniel Barbosa
Considerado o maior clássico do documentário brasileiro, “Cabra marcado para morrer”, de Eduardo Coutinho, foi realizado em dois momentos distintos, quase duas décadas distantes um do outro. Até algum tempo atrás, pouco se sabia sobre o projeto original, que remonta aos primeiros anos da década de 1960 e foi abortado pelo golpe militar de 1964.
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Coutinho tomou contato com a história do líder camponês paraibano João Pedro Teixeira e de sua mulher, Elizabeth Teixeira, em 1962. Foi quando começou a elaborar o roteiro de “Cabra marcado para morrer”. A ideia original era realizar a reconstituição ficcional da ação política que levou ao assassinato de Teixeira.
Nesse filme, camponeses interpretariam a si mesmos, recurso similar ao utilizado pelo neorrealismo italiano. O projeto do Centro de Cultura Popular da UNE contava com verba do Ministério da Educação e apoio logístico do Movimento de Cultura Popular de Pernambuco (MCP).
O longa começou a ser rodado em 1964, mas, com o golpe de 31 de março, forças militares cercaram a locação no engenho Galileia, em Pernambuco, e paralisaram as filmagens. Somente em 1981 Coutinho retomou o projeto, procurando Elizabeth e participantes do filme interrompido.
O e-book apresenta o roteiro integral do longa que seria concluído na década de 1960. Cerca de 40% do texto chegou a ser filmado. O material passou anos guardado na garagem de um general, pai do cineasta David Neves. Mais tarde, copiões ficaram depositados na Cinemateca do Museu de Arte Moderna, do Rio de Janeiro, disfarçados com o título “Rosa do campo”. Em 1981, foram retomados para a filmagem definitiva de “Cabra marcado para morrer”.
O processo de “O primeiro Cabra” teve início quando Mattos foi chamado para compor com a equipe do Instituto Itaú Cultural a curadoria da “Ocupação Eduardo Coutinho”, exposição que estreou em São Paulo, em 2019, e seguiu para o Rio de Janeiro em 2020.
“A gente mergulhou no acervo guardado no IMS. No meio desse material, encontrei o roteiro do filme que ele pretendia fazer em 1964. A gente sabia das cenas em preto e branco que estão no ‘Cabra marcado para morrer’ lançado em 1984, mas ninguém tinha ideia de como era o filme que Coutinho pretendia fazer 20 anos antes”, diz o pesquisador.
No fim de 2021, Mattos propôs ao IMS a edição do material. “A descoberta do roteiro abre uma série de questões sobre o filme”, diz.
Tudo começou em 1962
No e-book, ele analisa o modelo narrativo que Coutinho pretendia usar inicialmente e também aquele que chegou às telas na década de 1980. Mattos faz a retrospectiva de todo o processo, desde a chegada do cineasta à Paraíba, poucos dias depois do assassinato de João Pedro, para sondar as condições de realização do longa.
“Isso foi em 1962. Coutinho viu a viúva fazendo comício em uma praça e ficou impressionado com ela, mas só dois anos depois retornou para efetivamente fazer o filme. No ensaio, falo das conversas que ele teve com Elizabeth, falo das filmagens, da interrupção com o golpe militar, da retomada do projeto. Também faço um estudo do material que resultou na montagem final”, destaca.
Originalmente, não se tratava de documentário. “Era uma ficção no modelo narrativo do cinema político engajado da época, mostrando o embate entre trabalhadores rurais e latifundiários, além da perseguição aos líderes camponeses. Tinha cenas narradas por um cantador nordestino, coisa típica do Cinema Novo, como Glauber Rocha costumava muito usar”, explica.
O roteiro datilografado descreve cena por cena, com diálogos e anotações de Coutinho manuscritas nas margens das páginas. “É o filme completo. Com base no cálculo de que só 40% foram rodados, a gente só pode imaginar, lendo o roteiro, o que seriam os outros 60%”, observa o pesquisador.
Mutirão ganhou outro significado
Mattos também analisa o uso de cenas rodadas em 1964 na versão consolidada de “Cabra marcado para morrer”. “A cena do trabalhador rural construindo o telhado de uma casa, que daria o sentido de mutirão, de união dos camponeses, segundo o roteiro original, cumpre outra função no documentário de 1984, que é ajudar aquele mesmo personagem a se lembrar de fatos ocorridos há 20 anos”, aponta.
As duas décadas separam momentos diferentes tanto da situação política brasileira quanto de modelos cinematográficos postos em prática. “O ‘Cabra’ de 1964 e o ‘Cabra’ de 1984 divergem em quase tudo, mas o segundo depende fundamentalmente do primeiro para existir, já que é, ao mesmo tempo, o seu resgate e o seu contraponto”, afirma Mattos.
Essa contraposição se dá, sobretudo, pela mudança do olhar e da mentalidade do cineasta. Em 1964, havia direcionamento muito claro do que se queria fazer: um filme engajado, guiado pelo ideal da juventude de esquerda de mostrar a realidade social brasileira a partir de ponto de vista cristalizado, com muitas certezas acerca do que acontecia com os trabalhadores do campo.
“No início dos anos 1980, o país já era outro, os modelos de fazer cinema eram outros e o próprio Coutinho já era outra pessoa. Ele não estava mais interessado naquele modelo. Pelo contrário, queria era fazer perguntas, investigar a realidade, e não trabalhar com uma realidade pronta, com um roteiro de ferro, fechado. O contraponto é esse: o original era projeto de certezas, mas o que chegou ao público foi realizado a partir de dúvidas, de questionamentos, de investigação”, ressalta.
Dois momentos históricos
Afinal de contas, por que “Cabra marcado para morrer” é considerado “o maior clássico do documentário brasileiro”, como Mattos afirma em seu ensaio? “Primeiro, a originalidade com que Coutinho tratou o projeto. Nenhum filme no Brasil tinha esse escopo, essa pegada de tomar dois momentos cruciais da história – o golpe militar de 1964 e o início da redemocratização – e, através de uma família, contar a tragédia brasileira nesse período”, responde o pesquisador.
De acordo com ele, a originalidade está também na forma como Coutinho e equipe se colocam dentro do filme, processo transparente em que o espectador vê a obra sendo realizada. Mattos destaca a força da personagem central, Elizabeth Teixeira.
“O filme interferiu na história de vida dela de forma concreta. Elizabeth vivia escondida, com outro nome, em uma cidade do Rio Grande do Norte. Ao aceitar participar do filme no início dos anos 1980, ela está aceitando voltar à vida normal, sair da clandestinidade, estar às claras”, aponta.
VEJA trailer de 'Cabra marcado para morrer':
Ocupação em Poços de Caldas
A propósito, a “Ocupação Eduardo Coutinho” vai reestrear em janeiro de 2023 na unidade do IMS de Poços de Caldas, no Sul de Minas, em versão reduzida em relação ao que se viu em São Paulo, por questão de espaço físico.
“Vai ter muito material em vídeo, cenas que selecionamos de filmes do Coutinho, trechos de entrevistas em que ele fala coisas fundamentais sobre a própria obra e peças que são fetiche: os caderninhos de anotações, os fac-símiles de roteiros e cópias de documentos”, adianta Carlos Alberto Mattos.
"O PRIMEIRO CABRA”
• E-book organizado por Carlos Alberto Mattos. Disponível gratuitamente no site do Instituto Moreira Salles