Mariana Peixoto
João Carlos Martins e Arthur Moreira Lima nasceram no mesmo ano, 1940, com apenas 20 dias de diferença. Ambos cancerianos, com dedicação ao piano desde a infância, o primeiro em São Paulo e o segundo no Rio de Janeiro, se conheceram ainda garotos, ao assistir aos recitais um do outro. Amigos desde então, nunca rivais, forjaram suas próprias carreiras – o primeiro dedicado principalmente a Bach e o segundo, a Chopin.
Na noite desta quarta (12/10), no teatro do Centro Cultural Unimed-BH Minas, Martins e Moreira Lima, aos 82 anos, celebram não só a amizade, como os 60 anos de suas respectivas trajetórias na música de concerto. O recital é uma pré-estreia da turnê que ambos iniciam em abril de 2023, no Rio.
Martins vai executar Bach, Ennio Morricone e Schumann, enquanto Moreira Lima vai apresentar peças de autores brasileiros, além de interpretar Chopin. Ao final, a dois pianos, eles vão tocar “Libertango”, uma das obras mais conhecidas de Astor Piazzolla, que foi grande amigo do pianista carioca. Um vídeo com a trajetória de ambos será exibido durante a apresentação.
“Vai ser um negócio emocionante, pois o vídeo vai mostrar como foi o início da nossa vida profissional, a minha nos Estados Unidos e a dele na (ex) União Soviética, e depois como corremos o mundo”, diz Martins. No palco, um marco para a carreira de ambos foi o concerto que fizeram, nos anos 1980, no Lincoln Center, em Nova York.
Os dois tocaram, de forma intercalada, os 24 prelúdios de Bach e os 24 de Chopin. “Tudo que era pianista americano foi nos ver para saber como seria a combinação de Bach e Chopin, pois os formatos eram diferentes. Enquanto um acabava um prelúdio, o outro emendava naquela tonalidade”, recorda Martins. Fizeram pelo menos 40 apresentações em conjunto. “Depois, quando perdi definitivamente as mãos para o piano, voltamos a nos reencontrar, mas desta vez eu como maestro e ele como pianista.”
Arte e superação
O primeiro reencontro foi em 2005, em São Paulo, quando Martins, à frente da Bachiana Chamber Orchestra, e Moreira Lima como solista, fizeram um concerto em homenagem a Mozart.A história de superação do maestro é muito conhecida. Pianista virtuoso, ainda jovem sofreu um acidente que o obrigou a interromper a carreira. Voltou ao palco anos mais tarde e, já com a carreira restabelecida, desenvolveu o chamado distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho (Dort), o que mais uma vez o obrigou a se afastar do piano.
Quando conseguiu retornar ao instrumento, gravou praticamente toda a obra de Bach. Mas um novo incidente interromperia mais uma vez sua carreira. Ele chegou a ouvir dos médicos que jamais conseguiria voltar a tocar. Já passou por 25 cirurgias. Impossibilitado de retornar ao piano, passou a se dedicar à regência – há quase 20 anos mantém a Bachiana Filarmônica.
Em 2020, ganhou de presente do designer Ubiratan Bizarro Costa luvas biônicas – e assim voltou a tocar piano. “Com elas posso encostar os 10 dedos no piano, mas hoje não sou mais pianista profissional, só posso tocar peças mais lentas”, explica Martins.
Fora do "campeonato"
Já Moreira Lima se diz hoje aposentado. “Toco, mas não tanto quanto antes. Sou como um jogador de futebol: não jogo mais no campeonato, mas sempre topo uma pelada. Não estou mais agarrado aos grandes compromissos de carreira, mas vez ou outra aceito um convite. Não sou maníaco de ficar tocando em casa. Agora, quando atendo a convite, estudo um pouco, pois escolho um repertório mais adequado à idade.”
A primeira lembrança que ele tem de Martins era de saber que havia “um sujeito da minha idade em São Paulo que era muito bom”. “Conversamos durante o 1º Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro, em 1957, quando ele disse ter planos de fazer as 48 fugas de Bach. E era um adolescente”, diz Moreira Lima.
Este sempre se impressionou com a “exatidão do toque” de Martins. “E também a velocidade da digitação. Sua técnica era muito apurada, eletrizante.” O amigo devolve o elogio: “Embora tenha o maior respeito pela genialidade de Nelson Freire, os dois pianistas brasileiros que mais me emocionam são Guiomar Novaes e o Arthur.”
Mesmo que os dois tenham participado de vários concursos internacionais no início da carreira – tradicional trampolim para todo musicista que almeja uma grande trajetória como solista – nunca concorreram na mesma prova.
Para Moreira Lima, receber prêmios em concursos importantes (como o Chopin de Varsóvia e o Tchaikovsky de Moscou) e tocar em grandes palcos do mundo nunca o satisfizeram tanto quanto o projeto “Um piano pela estrada”, que rodou o Brasil durante 15 anos, a partir de 2003.
“Foram mais de 600 concertos em todas as unidades da Federação. Comecei pelo Rio São Francisco e fiz o último no Rio Solimões, com apoio logístico do Exército, que arrumou balsa para levar os caminhões”, conta. O projeto era de conceito simples, mas de realização pra lá de complicada. O pianista levava seu piano de cauda para rincões do país e apresentava-se em praças públicas.
“Eu me dediquei a tocar nos lugares mais escondidos, formei equipe para isso”, conta ele, que comprou três caminhões para o projeto. Eram dois de apoio e o principal era o chamado caminhão-teatro, onde era montado o palco – antes de cada apresentação, o pianista conversava com o público sobre o repertório de cada recital. No projeto, chegou a ter plateias de 10 mil pessoas.
A partir de 2018, Moreira Lima resolveu que era hora de encerrar o projeto. “Quando este governo ganhou as eleições, vi que não teria mais clima. Liquidei a coisa, vendi tudo”, comenta, em tom claro de lamento. “Foram não sei quantas turnês pelo Brasil, fizemos não sei quantas voltas ao mundo pelas estradas do país. E foi um negócio que realmente me realizou na vida, nada foi tão importante quanto o projeto”, diz.
CONCERTOS GERDAU
Com Arthur Moreira Lima e João Carlos Martins. Nesta quarta (12/10), às 20h30, no teatro do Centro Cultural Unimed-BH Minas – Rua da Bahia, 2.244, Lourdes. Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia). À venda na bilheteria e no site Eventim