Lucas Lanna Resende
O ano era 1998. Belo Horizonte vivia uma cena cultural efervescente, na qual músicos se juntavam a escritores e artistas dos mais variados segmentos. Nesse contexto, uma jovem cantora, ainda em início de carreira e sem nenhum disco para chamar de seu, chamou a atenção dos poetas mineiros Marcelo Dolabela (1957-2020) e Ricardo Aleixo.
Eles estavam em busca de alguém que pudesse interpretar canções com letras do piauiense Torquato Neto (1944-1972), na primeira edição da Bienal Internacional de Poesia de Belo Horizonte. A dupla viu na moça a pessoa certa para a função. A jovem era Patrícia Ahmaral.
Passados quase 25 anos desde seu primeiro mergulho no repertório de Torquato Neto, Patrícia resolveu voltar à obra do poeta neste ano, quando se completam 50 de sua morte. Patrícia lança álbum duplo só com canções do compositor piauiense que influenciou o movimento tropicalista.
“Um poeta desfolha a bandeira” terá seu primeiro volume lançado às vésperas do dia da morte de Torquato (10 de novembro). Já o segundo está marcado para sair em janeiro. Precedendo o lançamento do disco, a cantora disponibilizou, na última sexta-feira (14/10), nas plataformas digitais, as faixas “Let’s play that” e “Quero viver”, gravadas com as participações, respectivamente, de Jards Macalé e Chico César.
“Eu pensei em chamar o Macalé pelo que ele representa, o significado que ele tem na música brasileira. Além disso, ‘Let’s play that’ é uma canção dele e do Torquato”, lembra Patrícia.
Paródia
Ela conta que a letra da música foi escrita por Torquato como paródia do “Poema das sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Os versos “Quando eu nasci/ um anjo louco muito louco/ veio ler a minha mão” e “Eis que o anjo me disse/ apertando a minha mão/ entre um sorriso de dentes/ vai bicho desafinar/ o coro dos contentes”, de Torquato, de fato, muito remetem ao “Quando nasci/ um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: vai, Carlos, ser gauche na vida”, de Drummond.
“Torquato escreveu esse poema e entregou para o Naná Vasconcelos gravar. Aí ele mostrou o texto para o Macalé, que criou uma melodia mais ‘quebrada’ para o Naná. Acabou que, no final, foi o próprio Macalé quem gravou ‘Let’s play that’”, conta Patrícia.
Parceiro póstumo de Torquato Neto, Chico César foi o responsável por criar a melodia de “Quero viver”. A música do paraibano de Catolé do Rocha foi lançada em 2015, integrando o álbum “Estado de poesia”. Diferentemente de “Let’s play that”, que foi gravada por músicos dos mais diferentes estilos (de Rogério Skylab a Joyce Moreno e Gilson Peranzzetta), “Quero viver” ficou apenas na voz de Chico César.
“Escolhi lançar essa música junto com ‘Let’s play that’ porque uma serve de contraponto à outra na maneira como foram concebidas”, explica Patrícia. “Enquanto ‘Let’s play that’ foi feita como que em conjunto com o Torquato, quando ele ainda estava vivo e poderia sugerir ou modificar coisas na letra, ‘Quero viver’ é um poema dele, que o Chico musicou postumamente.”
Além da presença dos coautores das canções (Macalé e Chico), o single conta ainda com participações de Fernando Nunes (contrabaixo), Loco Sosa (bateria), Marion Lemonnier (teclados, loops e piano) e Rogério Delayon (guitarra baiana, cavaco de banjo). Todos na canção “Quero viver”. Quem assina a direção artística do projeto, por sua vez, é Zeca Baleiro.
Arranjos
“Tenho uma relação profissional antiga com o Zeca. Foi ele quem produziu ‘Ah!’, meu primeiro disco, lançado em 1999. Depois, em 2019, fiz show no qual ele foi o meu convidado para celebrarmos os 20 anos desse disco. Assim, nada mais justo que chamá-lo para a direção artística desse projeto”, diz Patrícia.
O maior cuidado que ela teve ao gravar as faixas foi não fazer com que os arranjos destoassem por completo das versões originais. Entretanto, ao mesmo tempo, não queria realizar um mero cover das canções. As mudanças foram sutis, mas conferiram vivacidade e uma nova instrumentação às canções.
“Acho que o nome de Torquato, com sua obra profundamente conectada a ideais libertários, é um contraponto poderoso ao obscurantismo que paira sobre a sociedade”, comenta a cantora. “Ele teve a coragem de se fragmentar, de correr os riscos do gesto criativo em várias frentes de vanguarda e, especialmente, no tropicalismo, que ele ajudou a erguer, apontando e assumindo a diversidade como nossa grande ou maior riqueza”, diz.
Peça-chave na Tropicália, Torquato escreveu as letras de “Geléia geral”, em parceria com Gilberto Gil; “Mamãe, coragem", com Caetano Veloso (ambas do disco“Tropicália ou Panis et circencis”, de 1968); “Go back”; “Todo dia é dia D”; “A rua”, “Louvação”, entre outros sucessos do movimento.