Jornal Estado de Minas

MEMÓRIA

Livro aborda história do Brasil por meio do que os mapas revelam e escondem

Daniel Barbosa
Organizado pelas historiadoras Junia Furtado e Andréa Doré, o livro “História do Brasil em 25 mapas” (Companhia das Letras), que será lançado nesta terça-feira (18/10), propõe estudo inédito sobre o país por meio de registros cartográficos, desde a chegada dos primeiros colonizadores até os dias atuais.





De um planisfério de 1502 a softwares que acompanham via satélite o desmatamento na Amazônia no século 21, o livro aborda América portuguesa, Brasil holandês, Companhia de Jesus, contrabando, revoltas rurais, povos originários, imigração, epidemias e ditadura, entre outros temas. Vinte quatro especialistas assinam os textos.

Além dos 25 mapas em destaque – ponto de partida para cada análise –, são recuperadas cartas, charges, desenhos e outros elementos que contribuem para o entendimento do assunto abordado.

"Tabula geographica Brasiliae", de Carl von Martius, já mapeava, em 1858, a riqueza da fauna e da flora do país (foto: Companhia das Letras/reprodução)

200 anos da Independência

Junia Furtado conta que foram duas as motivações para a obra. Uma delas é a efeméride dos 200 anos da Independência. “Achamos o momento apropriado para reflexões mais amplas sobre a história do país a partir da questão da Independência, mas pensando desde o Brasil Colônia”, diz.

A outra motivação foi o fato de a cartografia ser área de estudo que vem crescendo no país ao longo das últimas décadas. “Passamos a ter massa crítica de pessoas trabalhando nessa área, que, no entanto, ainda conta com número pequeno de publicações. Quisemos dar visibilidade a autores brasileiros que têm lidado com isso e se destacado no cenário internacional”, diz. Entre os convidados há também estrangeiros que trabalham com a história do Brasil.





Para Andréa Doré, a cartografia é fonte de pesquisa histórica similar a qualquer outra, mas com a diferença de carregar certa aura de veracidade, mais difícil de desconstruir. “A gente olha um mapa e tem dificuldade de pensar que aquilo não é a imagem da realidade”, observa.

Todas as fontes históricas passaram por momentos de questionamento e desconstrução ao longo do século 20, lembra Andréa Doré.

“Isso demorou para chegar na cartografia, essa abordagem tem início somente a partir dos anos 1990. Os mapas se mantiveram como espelhos da realidade. A gente aprendeu a desconstruir muita coisa a partir da década de 1920, a imprensa, a literatura, as charges. Os mapas chegaram mais tarde nesse processo de desconstrução de fontes históricas”, explica.

A ideia é estudar o mapa pensando no que ele apresenta e também no que ele esconde e distorce, afirma Junia Furtado, ressaltando que registros cartográficos não falam só sobre o que está representado neles. Por vezes, dizem mais sobre o que calam – e silêncios se tornam eloquentes.




"Isca" para imigrantes

“Mapas não são neutros, nenhum documento produzido pelo homem é neutro, eles têm uma linguagem, uma intenção”, diz a historiadora. Na maioria dos textos, autores tratam não só do que o mapa revela de uma região, mas, antes, do que ele camufla. 
 
Exemplo claro disso é o capítulo 15, “Utopias, silêncios e ruínas”, em que o historiador francês Laurent Vidal analisa mapa produzido para atrair colonos como imigrantes para o Brasil.

“O mapa apresenta um território da região Sul, onde a colônia iria se estabelecer, como área vazia, quando, na verdade, era uma terra já ocupada por indígenas e posseiros”, diz.





Outro exemplo está no capítulo 19, “Povos que vêm de fora”, abordando a imigração entre o final do século 19 e o início do século 20. A fonte de pesquisa é o desenho estampado na capa da revista O Immigrante.

“Ele apresenta lugares por onde os imigrantes chegariam ao Brasil, acentuando elementos que promoveriam a imigração: o porto, as estradas de ferro, as estradas de rodagem. Quer dizer, só mostra o que tem a ver com a modernidade. Mapa é a miniaturização do espaço. Elementos da realidade são levados ali para dentro. Cabe ao cartógrafo a seleção do que levar e não levar para o mapa”, pontua.

Ao comentar o fato de o objeto de estudo no capítulo 19 ser o desenho da capa de uma revista, Junia Furtado explica que a análise nem sempre é suscitada pelo mapa no sentido clássico, com signos e indicações. Exemplo disso é a imagem da introdução do livro, o desenho de Rugendas em que um grupo de homens está diante de um mapa pregado na parede.





“Não dá para ver o que este mapa mostra, mas a ilustração trata do momento da Independência do Brasil. Que visão daquele contexto essa imagem nos traz? É um registro passível de abordagem crítica”, diz a historiadora.

Charge e imperialismo

No capítulo 17, “O Brasil para os norte-americanos”, a análise do geógrafo alemão Jörn Seemann parte de uma charge sobre a vinda ao Brasil de Theodore Roosevelt, ex-presidente dos EUA, para participar de expedição guiada por Cândido Rondon, no início do século 20.

“A charge mostra Roosevelt apontando para um mapa do Brasil, demonstrando aparente desinteresse pela natureza, algo que esconde todos os interesses imperialistas em relação às Américas”, afirma Junia.





Ela destaca também que a fonte do estudo sobre a ditadura militar no capítulo 24, assinado pela historiadora Heloísa Starling, é o “mapa mental”, tirado do site Brasil Escola, que conecta imagens e expressões com o período estudado.

“A gente quis mostrar que a linguagem cartográfica é muito diversa. Ao longo dos textos, vários autores apontam como os mapas mentais podem se apresentar na forma de linguagem escrita ou oral que imprime formato cartográfico na cabeça do receptor. Como, por exemplo, quando te dou indicações de como chegar na minha casa”, explica.

Os capítulos têm ordem cronológica, mas podem ser lidos fora de sequência, “assim como a história do Brasil não deve ser lida de forma linear”, afirma Junia Furtado. Ela ressalta que a escolha dos mapas e dos temas de cada capítulo se deu em via de mão dupla: ora o mapa levava ao tema, ora o tema levou ao mapa.





O convite aos especialistas se baseou na identificação de cada um deles com a abordagem proposta. “Em alguns raros casos, deixamos que o autor indicasse o tema. De resto, a escolha de mapas e temas ficou 98% a nosso critério”, diz.

No caso do messianismo, o tema veio antes do mapa. “Era algo que a gente tinha a ideia de trabalhar, então fomos procurar mapas relativos às guerras de Canudos e do Contestado.”

"Mapa dos confins do Brazil com as terras da Coroa de Espanha na America Meridional" antecipou as atuais fronteiras do país (foto: Companhia das Letras/reprodução)

Von Martius e o meio ambiente

Já no capítulo 14, “Os viajantes e a paisagem natural do Brasil”, assinado pela historiadora Lorelai Kury, o mapa se impôs. O texto é focado no viajante prussiano Carl von Martius, que veio ao Brasil no século 19 e produziu registro cartográfico.

“Queria de qualquer jeito que este mapa entrasse no livro, porque ele permitiria que a gente trabalhasse dois temas importantes”, conta a organizadora.

“Foi o primeiro mapa a dividir o Brasil em biomas: a mata atlântica, a caatinga, a floresta tropical. Martius escreveu relatos de viagem em que estuda flora, fauna e costumes etnográficos. A partir disso, a gente poderia refletir tanto sobre as passagens dos viajantes estrangeiros pelo país quanto sobre questões ligadas ao meio ambiente”, ressalta.





Situação similar ocorre com o Mapa das Cortes, objeto de análise de Iris Kantor, no capítulo 10. “É o mapa apresentado pelos portugueses no Tratado de Madrid, assinado com os espanhóis em 1750, para propor novas fronteiras para o Brasil, que são muito próximas das que o país tem hoje. A formação do território é um aspecto importante que a gente queria tratar”, diz a organizadora.

Além da academia

“História do Brasil em 25 mapas” foi feito com a preocupação de chegar à audiência além da esfera acadêmica, afirma Andréa Doré. Ela pondera que é complexo encontrar equilíbrio entre o público mais amplo e outro, não estritamente acadêmico, ligado ao universo da educação.

“Ao fazer convites aos autores, orientamos com relação a alguns elementos práticos, como evitar palavras que não sejam de uso corrente, buscando vocabulário mais acessível, trabalhar com frases e textos mais curtos. Quando fosse necessário usar um conceito específico, que ele viesse acompanhado de explicação”, explica a organizadora do livro.




 
O volume reúne os especialistas Andréa Doré, André Reyes Novaes, Artur Barcelos, Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno, Camila Loureiro Dias, Carmem M. Rodrigues, Carolina Martínez, Daniela MarzolaFialho, Daniel de Souza Leão Vieira, Denise Moura, Edilene Toledo, Federico Ferretti, Heloisa Murgel Starling, Iris Kantor, Jacqueline Hermann, Jacques Leenhardt, Jörn Seemann, Junia Furtado, Laurent Vidal, Lorelai Kury, Maria de Fátima Costa, Maria do Carmo Andrade Gomes, Regina Horta Duarte e Tiago Bonato.

(foto: Companhia das Letras/reprodução)
“HISTÓRIA DO BRASIL EM 25 MAPAS”

• Organização: Andréa Doré e Junia Furtado
• Companhia das Letras
• 464 páginas
• R$ 169,90
• R$ 49,90 (e-book)