Certa vez, a atriz Susana Vieira, um dos rostos mais conhecidos da TV brasileira, pediu ao amigo Miguel Falabella um texto para encenar nos palcos. Embora já chegassem até ela diversas peças e propostas de montagens, Susana estava obstinada: queria algo que fosse do Falabella.
A teimosia, no entanto, tinha justificativa. Amiga de longa data do ator, diretor e escritor, ela trabalhou com ele em "A partilha", texto teatral dele que teve enorme sucesso desde a montagem original, de 1991, em que Susana Vieira dividia o palco com Arlete Salles, Patrícya Travassos e Thereza Piffer.
A história das quatro irmãs que discutem suas pendências emocionais quando a mãe morre e é preciso fazer a divisão de bens ganhou também uma versão cinematográfica, na qual Daniel Filho dirigiu Gloria Pires, Andréa Beltrão, Lília Cabral e Paloma Duarte.
No teatro, a peça foi remontada em 2010 e ficou mais dois anos em cartaz. Para Susana, voltar ao palco com um texto de Falabella seria garantia de sucesso, além de proporcionar a satisfação pessoal de trabalhar com um amigo.
Miguel Falabella, contudo, estava ocupado com outros projetos. Mas, para não deixar a atriz na mão, decidiu enviar a ela uma peça escrita por um dramaturgo britânico que ele admira chamado Willy Russel. O texto era a adaptação - feita pelo próprio Falabella - de "Shirley Valentine", que foi rebatizada com "Uma Shirley qualquer" e chega a Belo Horizonte neste fim de semana, com sessões neste sábado (22/10) e domingo, no Sesc Palladium.
Machismo
No Brasil, "Uma Shirley qualquer" já havia sido encenada tendo no papel-título Renata Sorrah (1991) e Beth Faria (2009). A primeira versão com Susana Vieira estreou em 2015, com direção de Falabella. A que chega neste fim de semana a Belo Horizonte é dirigida por Tadeu Aguiar.
Sobre sua decisão de seguir encenando esse texto em vez de partir para uma nova montagem, a atriz afirma: "Eu recebo muitas propostas e muitos textos para encenar, mas insisto com essa peça porque ela é muito atual. Ela trata do machismo, que continua muito presente em nosso país".
Escrita originalmente na década de 1980 e sob a perspectiva de um inglês que não ignorava os preconceitos de gênero que prevaleciam na sociedade britânica à época, "Uma Shirley qualquer" acompanha a vida monótona da personagem que dá nome à obra.
Casada há um bom tempo com o mesmo marido e com os filhos já criados, Shirley começa a se questionar a respeito de como leva a vida. Esse questionamento se dá por meio de lembranças de situações inusitadas, corriqueiras e angustiantes que experimentou ao longo da vida.
Compartilhando essas memórias com os espectadores em forma de monólogo, Shirley acaba concluindo que, embora tenha constituído uma família e ainda mantenha um relacionamento duradouro, ela é uma pessoa solitária.
Essa conclusão não é um impeditivo para ela mudar sua vida de rumo, contudo. Pelo contrário. É justamente por causa dessa percepção que ela aceita o convite de uma amiga para viajar à Grécia sem a companhia dos respectivos maridos.
"É incrível que, com essa distância do tempo, desde que foi escrita até os dias de hoje, e da distância de países e culturas, essa peça permaneça atual, não é?", comenta a atriz.
"A Shirley é uma mulher que tem medo do marido. E a peça mostra essa primazia que há do pensamento de que o homem pode fazer qualquer coisa e a mulher tem que ficar em casa. É justamente isso que acontece com a Shirley. Ela fica dentro de casa, preparando a comidinha para o esposo, que é um homem controlador", diz.
América Latina
Ainda que sua trajetória pessoal em nada coincida com a da personagem que interpreta, a atriz afirma que existe um pouquinho de Shirley em cada mulher, sobretudo as latinoamericanas.
"Essa visão machista ainda é bem comum nos países da América Latina. Outros países de outras regiões já começaram a mudar essa visão", afirma, citando Nova Zelândia, Alemanha e Inglaterra, que contaram ou ainda contam com mulheres no cargo de primeira-ministra.
Ela acrescenta que viveu no México enquanto gravava uma novela e lá conheceu homens que reproduziam intensamente essa cultura machista. "Tinha um homem que andava armado e, quando ia dormir, colocava a arma debaixo do travesseiro", conta.
A libertação que a personagem de Susana Vieira experimenta em "Uma Shirley qualquer", no entanto, talvez possa se comparar com a que a própria atriz vive há algum tempo. Aos 80 anos, completados em 23 de agosto último, ela garante que está em "pleno exercício do viver", com muito gás para trabalhar e para namorar.
"Me casei muito jovem. Tive filho com 18 anos. Mas, quando ele estava com 5 anos, eu me separei. Levei a vida sozinha", diz. "Comecei minha carreira na década de 1960, na TV Tupi. Nos anos 1970, fui para a TV Globo, onde estou até hoje. Fiz muita novela e teatro. Estou em cartaz e ainda tenho muitos projetos para o futuro, entre eles minha biografia e um documentário contando minha história. Portanto, minha vida sempre foi dedicada ao trabalho", conta.
Temporada portuguesa
Antes da turnê de "Uma Shirley qualquer" pelo Brasil, Susana Vieira passou uma temporada em cartaz com a peça em Portugal. Durante 10 dias, ela se apresentou em Lisboa, Braga, Sintra, Porto e Leiria.
"Foram os 10 dias mais felizes da minha vida", afirma. "Nesse período, eu fiz coisas que há muito tempo não fazia, como pegar a estrada de carro para fazer as apresentações, dormir no banco de trás durante a viagem, sair com a equipe à noite para jantar e ter que comer pizza fria", brinca.
"UMA SHIRLEY QUALQUER"
Texto: Willy Russel. Adaptação: Miguel Falabella. Direção: Tadeu Aguiar. Com Susana Vieira. Neste sábado (22/10), às 20h30; e domingo (23/10), às 19h. Grande Teatro do Sesc Palladium (Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro). Ingressos: R$ 75 (inteira) e R$ 37,50 (meia), à venda na bilheteria do teatro e pelo Sympla. Mais informações: (31) 3270-8100. Classificação: 12 anos