''Parece que a caixa de pandora da raiva, do ódio e da intolerância foi aberta. De repente, ficou bonito mentir e ficar com cara de cínico, ofender, ser preconceituoso, humilhar as pessoas. Mas nós vamos sobreviver, como sobrevivemos às guerras, às pestes, ao regime militar, à Idade Média''
Monja Coen, escritora
Acostumada a viajar muito, divulgando os ensinamentos budistas, numa rotina que remonta aos últimos 30 anos, Monja Coen de repente se viu trancada em casa, por causa da pandemia. A suspensão das atividades presenciais fez com que ela mergulhasse em leituras e na escrita de livros. Autora best-seller, ela já vendeu mais de 300 mil exemplares, somente de títulos publicados pela Editora Planeta.
Ao longo dos últimos dois anos, foram mais sete obras produzidas. A mais recente delas, que acaba de vir à luz, é “Que sementes você está regando?”, do selo Academia, pertencente à Editora Planeta. Com esse novo trabalho, intrinsecamente ligado ao momento presente, Monja Coen trata, fundamentalmente, de fazer escolhas.
Ela aponta que cada pessoa carrega em si todas as sementes, que se relacionam com a memória ancestral, de milhões de anos, guardando infinitas possibilidades de ser e estar no mundo.
“Nós é que regamos essas sementes, às vezes inadvertidamente, às vezes fazendo escolhas. Recebi uma provocação, fiquei com a semente da raiva, então posso sair por aí quebrando tudo, brigando, ou posso regar a semente da plena atenção, abraçar a raiva e transformar isso numa resposta minha ao mundo”, diz.
Assim como toda sua bibliografia, o novo livro oferece ensinamentos ancorados nos preceitos do zen-budismo. Fundadora da Comunidade Zen-Budista Zendo do Brasil, criada em 2001, Monja Coen fez os votos monásticos no Zen Center de Los Angeles, nos Estados Unidos, em 1983. Residiu por oito anos no Mosteiro Feminino de Nagoya, no Japão, onde graduou-se como monja especial, habilitada a ministrar aulas de budismo para monges e leigos. Retornou ao Brasil em 1995, como missionária da tradição Sôtô Zenshû.
Ideia de causalidade
O que ela propõe no livro é que as pessoas são sementes de si mesmas, estão sempre renascendo e por isso contêm todo o passado e todo o futuro.
“Estamos sempre deixando sementes, não só as que escolho plantar, porque eu mesma sou semente. Tem a ver com a ideia de causalidade, que é um ensinamento básico do budismo: tudo o que acontece tem uma causa, é uma trama de inter-relacionamento. Perceber isso é o que chamamos de ‘despertar’, e ‘despertar’ é o próprio Buda”, pontua.
Alcançar essa percepção pode funcionar como antídoto para este momento tão conturbado que o Brasil e o mundo vivem, com as sequelas da pandemia e os cenários político e social atravessados por instabilidades e ameaças. Monja Coen observa que a pandemia tirou as pessoas do eixo e muitas delas ainda não conseguiram voltar.
O principal indicativo dessa constatação é a ansiedade. “As pessoas estão aflitas, como se precisassem recuperar um tempo perdido. Teve muito divórcio, muita briga pelo excesso de convivência. E mesmo agora, com a volta das atividades presenciais, há um estranhamento, uma condição de ansiedade, de impaciência, de nervosismo”, observa.
Sociedade do cansaço
A autora identifica também a cobrança maior das pessoas para consigo mesmas – algo característico dos tempos atuais e que vem se amplificando de maneira temerária. “Estamos mais exigentes conosco e com os outros, o que é um perigo”, diz, evocando o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, autor do livro “A sociedade do cansaço”.
“Exijo muito de mim, porque quero ser excelente, quero fazer o melhor e com isso me torno meu próprio algoz, sou meu julgador. Essa condição acaba levando à depressão. Quero produzir, sou capaz de aceitar tudo, capaz de fazer tudo, só que, de repente, vejo que não dou conta de ser aquilo que imaginei que seria, e aí vem a tristeza e a frustração”, aponta.
Ela identifica o sentimento de indignação social que as pessoas acabam por reproduzir numa esfera íntima e, com isso, acabam não se achando suficientes, capazes de atender às próprias expectativas.
“A gente precisa perceber isso e se dar um tempo, ter uma pausa, tirar um momento para não fazer nada e não se sentir culpado por não estar fazendo nada”, diz.
Vida atribulada
Do alto de seus 75 anos, Monja Coen admite que tem uma vida muito atribulada, que acumulou atividades ao longo do tempo, o que se relaciona com o desejo de atender às pessoas e à dificuldade em dizer não.
A pausa forçada pela pandemia lhe trouxe muitas reflexões e agora ela tenta diminuir o ritmo. “Tenho procurado reduzir as atividades, mas a vida é movimento e transformação, não dá para ficar lutando contra”, considera.
A atribulação parece soar contraditória com os preceitos do zen-budismo, de recolhimento e introspecção. A própria Monja Coen ressalta que a palavra zen quer dizer meditar e se relaciona com um processo de autoconhecimento. Ela pondera, no entanto, que esse processo não ocorre somente dentro de mosteiros ou em cavernas fechadas – ele está presente na vida e tem que fazer parte do dia a dia.
“É muito importante a gente sair um pouco da rotina e entrar em processo de introspecção, mas ninguém pode ficar na pausa o tempo todo, a gente tem que viver. O processo de meditação, de autoconhecimento, deve ser na vida diária. Eu me reconheço na relação com o outro, com a natureza. Qual é meu lugar no mundo? O despertar é isso, você perceber que não é parte do todo, mas o próprio todo manifesto; cada um de nós é o todo manifesto”, destaca.
"Exijo muito de mim, porque quero ser excelente, quero fazer o melhor e com isso me torno meu próprio algoz, sou meu julgador. Essa condição acaba levando à depressão''
Monja Coen, escritora
Passado no jornalismo
Muito do que aprendeu em sua formação monástica já estava, de certa forma, indicado no jornalismo – profissão que exerceu, trabalhando no “Jornal da Tarde”, nos anos 1970, em São Paulo, antes de abraçar o zen-budismo. Monja Coen se recorda de que não era fácil, pois a timidez atrapalhava e ela se sentia envergonhada ao entrevistar as pessoas.
“Até o dia em que percebi que não era eu quem perguntava, era o público que queria saber. Eu não era importante, só tinha que entender o que estava acontecendo. Isso é uma coisa que se trabalha no zen, o ‘eu não-eu’. Existe a individualidade, ela é importante, mas está conectada a tudo o mais. Um monge vietnamita sugere a palavra ‘interser’, porque ‘intersomos’, estamos relacionados a tudo e a todos. Comecei a ter essa percepção como jornalista”, revela.
Outra lição importante que levou do jornalismo para a prática budista tem a ver com a investigação, com o olhar mais profundo. “Não somos capazes de ver tudo e entender tudo, mas devemos pelo menos procurar. Isso é algo que se exige no zen e que o jornalismo me apontou como caminho. Tem que haver investigação – dos fatos no âmbito do jornalismo e dos nossos sentimentos e pensamentos no budismo”, comenta.
Redes sociais
Monja Coen avalia que o jornalismo cumpre um papel muito importante nos dias atuais, sobretudo no que diz respeito ao combate às fake news. Ela entende que as redes sociais se constituem numa ferramenta preciosa – para o próprio tipo de atividade que desenvolve, por exemplo –, mas também podem ser usadas para fins perversos.
“Eu uso para dar aulas, para levar as pessoas a refletir, mas tem quem tente manipular a mente das pessoas. Essa linha, muito comum hoje em dia, é perigosa, porque nos afasta da verdade. Buda dizia que aquilo que levava à verdade era o bem, e o que afastava era o mal.”
Ela diz que tentar afastar as pessoas da verdade é tentar apartá-las dos outros e de si mesmas. “A palavra ‘diabo’ tem sua origem em ‘dois’, o que é dual, o que separa, e o contrário disso é o uno, o que tem a ver com unidade. Tem gente agora distribuindo marmita na rua e gente jogando comida fora, porque não gostou, e não tem sequer a sensibilidade de oferecer para alguém”, ressalta.
Lado sombrio
As redes sociais escancaram o lado sombrio dos seres humanos, segundo Monja Coen. Ela observa que, diante da profusão de mensagens e de fake news, pessoas mais sensíveis ficam sujeitas à depressão e à ansiedade. “Elas acabam deixando de sair na rua, por medo, e o medo é uma forma de controle das sociedades”, diz.
Ao comentar o atual cenário político e social do país, emerge a “Monja Coen modo pistola”, nas palavras da própria. Ela faz uma crítica contundente ao falso moralismo que grassa na extrema direita e entre seus seguidores. A condenação do aborto, a intolerância religiosa, o preconceito racial e contra a comunidade LGBTQIA+, o não entendimento da diversidade se alinham com um pensamento ditatorial, aponta.
“Parece que a caixa de pandora da raiva, do ódio e da intolerância foi aberta. De repente, ficou bonito mentir e ficar com cara de cínico, ofender, ser preconceituoso, humilhar as pessoas. Mas nós vamos sobreviver, como sobrevivemos às guerras, às pestes, ao regime militar, à Idade Média, a tantas tragédias. Nós sobrevivemos a isso tudo, e haverá sobreviventes, mas precisamos minimizar o sofrimento e tentar fazer com que a história não se repita”, diz.
"QUE SEMENTES VOCÊ ESTÁ REGANDO"
Reflexões zen para cultivar a vida plena
• De Monja Coen
• Planeta
• 160 págs.
• R$ 36,80