"Não sei de onde ele tira tanta energia. Viaja sorrindo, chega nos lugares um dia antes. E os shows estão cada vez mais emocionantes. Dá um nó na garganta que esteja chegando ao fim. Mas o Bituca vai ter as férias da vida dele. Estamos inclusive planejando passear juntos, igual fazíamos quando éramos moleques"
Márcio Borges, compositor
Os amigos sabem muito bem: todo 26 de outubro é dia de festa. Em casa, entre os que lhe são caros e com muita música. A deste ano vai ser especial. Milton Nascimento chega nesta quarta-feira (26/10) aos 80 anos, em plena atividade, na reta final de uma bem-sucedida turnê de despedida (dos palcos, não da música), que vem crescendo a cada nova apresentação.
A banda que o acompanha n’ “A última turnê de música”, que termina em 13 de novembro próximo, no Mineirão, estará presente no Anfiteatro Wayne Shorter. O espaço, criado na casa de Milton, no Itanhangá, Zona Oeste do Rio de Janeiro, foi batizado com o nome do saxofonista americano que se tornou parceiro dele em 1974 com o álbum “Native dancer”. A inauguração, uma porção de anos atrás, foi também em um 26 de outubro, e contou com a presença do próprio Shorter.
Na noite de canjas, o microfone estará aberto. Uma das presenças será de Esperanza Spalding, que, como as redes sociais de Milton destacaram, está nesta semana no Rio para as comemorações. A contrabaixista e cantora americana participou de um dos nove shows nos EUA, na primeira quinzena deste mês.
"Falei que era contra, estava preocupado com a saúde dele. Mas, a cada show, o Bituca passou a cantar mais, a voz veio mais, ele improvisando... Foi impressionante. Hoje ele está cantando mais do que na turnê passada"
Wilson Lopes, instrumentista e arranjador
Surpresa para Bituca
Outros amigos, aliás, prestaram o devido tributo no braço americano da turnê, subindo ao palco: Herbie Hancock em Los Angeles; Fito Paez, em Nova York. Sergio Mendes, Stanley Clarke, Paul Simon estiveram na plateia. Este último, aliás, surpreendeu. No quarto do hotel em Nova York, Milton esperava a chegada do cantor e compositor argentino. Foi Simon quem apareceu – logo pegou o violão e começou a tocar.
Parceiro de primeira hora, o letrista Márcio Borges tem acompanhado de perto a turnê. Já assistiu a seis shows, dois deles nos EUA. Chegou ontem de Nova York para a comemoração – Milton havia ligado um dia antes, perguntando se ele voltaria a tempo da festa.
“Não sei de onde ele tira tanta energia. Viaja sorrindo, chega nos lugares um dia antes. E os shows estão cada vez mais emocionantes. Dá um nó na garganta que esteja chegando ao fim. Mas o Bituca vai ter as férias da vida dele. Estamos inclusive planejando passear juntos, igual fazíamos quando éramos moleques. Estou muito alegre e comovido por saber que estive presente na primeira sessão de música e agora estou acompanhando a última”, diz Borges.
Violonista, guitarrista, arranjador e professor, Wilson Lopes completa, em 2023, trinta anos tocando ao lado de Milton – há 20 é arranjador e diretor musical de todas as turnês. A opinião sobre a turnê é semelhante à de Borges. “A ascendência do Bituca (nos shows, que tiveram início em junho) foi uma coisa absurda. Logicamente, quando o capitão cresce, a banda toda cresce.”
Quando a temporada de shows foi iniciada, Lopes admite que foi voto vencido. “Falei que era contra, estava preocupado com a saúde dele. Mas, a cada show, o Bituca passou a cantar mais, a voz veio mais, ele improvisando. Foi impressionante. Hoje ele está cantando mais do que na turnê passada.”
Lopes conheceu Milton quando era adolescente. Não passava dos 16 quando o encontrou no casamento de Toninho Horta, em Três Pontas. “Ele passou do meu lado e dei três tapinhas no ombro e disse: ‘Ô Miltão doidão’. Ele parou, deu um passo para trás, e uma encarada brava. Depois passou um tempo, ele veio para perto de mim, e eu tremia igual vara verde. Me disse: ‘Quem é doidão?’. Demos risada e ficamos amigos de infância naquele momento”, relembra Lopes.
Somente uma década mais tarde eles se tornaram parceiros – a primeira canção juntos foi “De um modo geral”, do álbum “Angelus” (1993).
"O Bituca é um farol que ilumina a minha vida. Olho para ele, fazendo tudo o que está fazendo hoje: tomara que eu chegue nessa idade com a energia dele"
Lô Borges, cantor e compositor
Não dá para falar em parceiro de Milton sem falar em Lô Borges, que dividiu com ele o álbum duplo “Clube da esquina”, cinquentenário neste 2022. “O Bituca é um farol que ilumina a minha vida. Olho para ele fazendo tudo o que está fazendo hoje: tomara que eu chegue nessa idade com a energia dele”, diz Lô, que completou 70 neste ano.
Das inúmeras parcerias juntos, Lô não tem como não eleger a primeira, “Clube da esquina”, como a fundamental. “A 1, não a 2, que ficou muito mais famosa. Sem essa canção não existiria o álbum ‘Clube da esquina’”, afirma. Gravada no disco “Milton” (1970), quando Lô tinha 18 anos, ela nasceu do encontro dos dois na esquina de Santa Tereza, numa noite qualquer.
“É uma história quase romântica. A canção estava quase pronta, o Bituca inventou uma melodia linda, e o Marcinho (Borges) chegou no fim da tarde. Quando ele viu o parceiro dele tocando com o irmão mais novo, disse que iria escrever a letra. Só que acabou a energia elétrica e minha mãe iluminou o caderno com uma vela. Dona Maricota (matriarca dos Borges) inaugurou uma profissão: iluminador de letra”, conclui Lô.
Parabéns a muitas vozes
A celebração em torno da vida de Milton Nascimento traz alguns lançamentos. Djonga gravou “Travessia” (1967), primeira parceria de Milton e Fernando Brant, para o projeto “Atemporais”. Criado pelo Spotify para homenagear os quatro grandes da música brasileira que chegaram aos 80 em 2022 – Caetano Veloso, Gilberto Gil e Paulinho da Viola, além de Bituca –, traz singles de canções antológicas regravadas por novos artistas.
“Travessia” será lançada nesta quarta (26/10) na plataforma de streaming, assim como “Maria Maria”, registrada por Ludmilla. No single, o rapper mineiro realmente solta a voz na estrada, como preveem os versos de Brant, sob discreta base eletrônica.
A escolha de Djonga para a homenagem é coerente. Ele sempre destacou a importância de Milton e, em seu álbum de estreia, “Heresia” (2017), refez a capa do álbum “Clube da esquina”, aparecendo duplicado em uma foto tal qual os dois garotos, Cacau e Tonho, registrados em 1972 por Cafi para o disco de Milton e Lô.
Outro lançamento, também disponível a partir de hoje nas plataformas digitais é o álbum “Milton” (Biscoito Fino), de André Mehmari e Mônica Salmaso. Pianista e cantora gravaram 11 canções de autoria ou do repertório de Milton. A gravação, realizada em dezembro de 2020 para um projeto de lives do YouTube, se tornou show – a dupla se apresentou em maio passado, no Palácio das Artes.
“Seria um pecado deixar o material escondido (já que a live não foi reprisada), e daí propus um disco para a Biscoito Fino”, diz Mônica. A gravação foi realizada em um único dia. Sem ensaiar, pois era época de quarentena, o pianista e a cantora fizeram tudo “de primeira”.
“A maior parte dos arranjos foi feita no dia da gravação. ‘Credo’ (Milton e Brant) e ‘Paula e Bebeto’ (Milton e Caetano), por exemplo, eu nunca tinha tocado antes. Foi tudo na emoção”, comenta Mehmari, que é parceiro de Mônica há duas décadas e tem bastante intimidade com o repertório do Clube da Esquina – em 2019, lançou o álbum “Na esquina do Clube com o sol na cabeça”.
A "alma do Milton"
Quando o repertório começou a ser definido, Mehmari comentou com Mônica que a única canção que ele fazia questão era “Paixão e fé” – de autoria de Tavinho Moura e Fernando Brant. “Mas, para mim, ela simboliza a alma do Milton e do Clube”, diz Mehmari.
Além de piano, ele também toca marimba de vidro em “A terceira margem do rio” (de Milton e Caetano). “Foi de forma impensada. Comecei a fazer a música no piano, o Teco (Cardoso) começou a tocar flauta. Eu tenho uma cópia da marimba de vidro do Uakti e resolvi tocar ali. Esse arranjo reflete o momento de criação que tivemos no estúdio”, comenta Mehmari.
Mônica, que está em meio à turnê “Que tal um samba?”, com Chico Buarque, comenta que cantar Milton vai além do desafio para qualquer intérprete.
“Tudo é definitivo na voz dele. Milton é de uma geração de heróis, e, no caso dele, não é só a voz, o timbre. Ele é também a nossa voz, da terra, do que nos liga com a nossa história. A música do Milton abrange tudo: o que é tradicional, o que é moderno. Ele canta o Brasil profundo com toda a sua mistura. Ninguém ouve a voz do Milton impunemente. A partir de Minas, ele fala do Brasil”, diz a cantora.