Ele foi e fez tudo muito – e isso não foi necessariamente positivo. Com a morte de Jerry Lee Lewis ontem, aos 87 anos, de causas naturais, foi-se o último dos sobreviventes – e o maior dos anti-heróis – do time de pioneiros do rock’n’roll lançados pelo Sun Studios, de Memphis, Tennessee (colegas de gravadora: Elvis Presley, Roy Orbison, Johnny Cash e Carl Perkins).
The Killer, o apelido que o acompanhou por toda a vida, protagonizou, por mais de meio século, uma carreira errática. Em que mais de uma vez sua tumultuada trajetória pessoal suplantou suas conquistas musicais. Mas isso não tira dele, de maneira alguma, a importância e o protagonismo no universo do rock.
“Great balls of fire” (1957) é seu primeiro disco – e, diante dele, o mundo veio abaixo e nunca mais foi o mesmo. Assim como Elvis, Lewis veio das entranhas do Sul dos Estados Unidos, terra do blues e da música negra.
Nascido em 29 de setembro de 1935, em Ferriday, Louisiana, em uma família humilde, tinha apenas 8 anos quando o pai hipotecou sua casa para lhe dar um piano. Na época, aluno de uma escola evangélica, acabou sendo expulso por tocar versões aceleradas de hinos religiosos.
Nunca mais voltou a estudar e abraçou a música de todas as maneiras que pôde – country, boogie-woogie, rhythm’n’blues, gospel. Sua primeira apresentação, aos 14 anos, foi na inauguração de uma concessionária de carros. Em 1956, bateu às portas da Sun Records e logo se tornou pianista de Cash, Perkins e Elvis, grupo posteriormente apelidado de Million Dollar Quartet.
Chutes
Um ano mais tarde, viria o álbum de estreia. Irritado porque, com o piano, não podia dançar no palco como Elvis e sua guitarra, Lewis não fez por menos: passou a chutar seu próprio instrumento. E, ao longo de sua trajetória, passou a fazer de tudo com o piano: tocava com os pés, com os punhos cerrados e até mesmo com o traseiro. Tudo era possível no palco.
Para além de “Great balls of fire”, Lewis teve outros sucessos, não muitos, mas que lhe garantiram seu lugar como arquiteto do rock’n’roll: “Whole lotta shakin’”, “High school confidential” e “Breathless”, “Lovin’ up a storm” e “Chatilly lace” são as mais conhecidas de uma trajetória que somou 40 álbuns de estúdio.
Sua vida pessoal é uma somatória de tragédias e acontecimentos desmedidos que impressionam por não ter catapultado sua carreira na música. Ao se casar com a prima Myra Gale Brown, então com 13 anos, Lewis colocou uma pá de cal em sua própria trajetória.
Na época, 1958, ele estava no auge e em plena turnê pelo Reino Unido. Quando o escândalo foi revelado, o restante dos shows foi cancelado. Estações de rádio e promotores de shows dos EUA também o escantearam, e sua popularidade desapareceu. Ele nunca mais teve um hit no Top 20 dos EUA.
Casamentos
Myra Gale foi a mulher número três de Lewis – ao todo, foram sete casamentos. Ele, que teve seis filhos, ainda testemunhou a morte de dois – Steve Allen Lewis se afogou em uma piscina, aos 3 anos, e Jerry Lee Lewis Jr., que chegou a tocar bateria com ele, morreu em um acidente de carro, aos 19 anos.
Sua quarta mulher, Jaren Elizabeth Gunn Pate, também morreu afogada em uma piscina, em meio a um divórcio turbulento. Já a quinta, Shawn Stephens, sucumbiu a uma overdose.
Mais: em seu 41º aniversário, Lewis atirou no peito de seu próprio baixista. Também jogou um Rolls Royce em um fosso, viciou-se em analgésicos e sangrou, quase até morrer, de uma úlcera no estômago.
A série de úlceras foi responsável por perder um terço do estômago. Em 1986, dois anos após ter sobrevivido à cirurgia, ele chegou ao Rock’n’roll Hall of Fame, tendo como colegas Chuck Berry e Elvis. Com o primeiro, ficou notória a história do show em que Lewis incendiou o piano por não aceitar tocar antes que Berry. Com Elvis também houve altercações. Em 1976, Lewis foi preso depois de aparecer bêbado em Graceland com uma arma carregada no painel de seu carro.
Ganhou muito, mas acabou devendo centenas de milhares de dólares ao fisco. Em 1994, quando começou a receber turistas em sua residência perto de Nesbit, Mississippi – cuja piscina tinha a forma de um piano – ele criou um número de telefone para que os fãs pudessem ligar para uma mensagem gravada. Custou, na época, US$ 2,75 por minuto.
A despeito de tamanha bagagem, Lewis conseguiu se reinventar na música. Na década de 1960, fez sucesso no country, período em que ganhou três Grammys. Mais recentemente, reuniu outros grandes como ele em três álbuns, seus últimos discos.
Convidados
“Last man standing” (2006) contou com a participação de 21 grandes – Mick Jagger, Jimmy Page, Bruce Springsteen, B. B. King e Keith Richards entre eles. Quatro anos mais tarde, Lewis levou Jagger, Richards, Sheryl Crow e Tim McGraw, entre outros, para participar do álbum “Mean old man”. Seu derradeiro trabalho é “Rock & roll time” (2014), que contou com sessões de estúdio de Richards, Ron Wood e Neil Young.
Há 13 anos, apresentou-se em Belo Horizonte. Em 20 setembro de 2009, encerrou uma turnê pelo Brasil no finado Music Hall, em Santa Efigênia. Noite de domingo, a casa estava pela metade. Mas nada disso fez diferença para o músico, um senhor de sapatos brancos e camisa bicolor, e a plateia.
Prestes a completar 74 anos na época, disse a esta repórter que não era mais o mesmo. “Os reflexos estão mais lentos. É claro que não pulo mais como antes. A precaução vem junto com a idade. E você sabe que fiz muitas coisas loucas na minha vida.”
Sua trajetória foi parar no cinema em 1989, no filme “A fera do rock”, com Dennis Quaid como Lewis e Winona Ryder como Myra Gale. Sobre estas “coisas loucas” retratadas no cinema, Lewis disse não concordar: “Atualmente, vejo esse assunto de uma forma melhor do que no passado. A verdade é que não fiquei nada feliz quando ele foi lançado. Aliás, ninguém da minha família ficou.”
Na conversa, não perdeu a fleuma de maneira alguma – e apesar das muitas pelas quais passou na vida. “Não vejo ainda hoje alguém tocando piano como eu. Costumo dizer que basta me dar um piano para daí a 15 minutos as pessoas começarem a balançar, gritar e tremer dos pés à cabeça.” (Com agências de notícias)