“Caríssimo Portinari, (...). Dizem que somos pessimistas e exibimos deformações; contudo, as deformações e miséria existem fora da arte e são cultivadas pelos que nos censuram. O que às vezes pergunto a mim mesmo, com angústia, Portinari, é isto: se elas desaparecessem, poderíamos continuar a trabalhar?. Desejamos, realmente, que elas desapareçam ou seremos também uns exploradores, tão perversos como os outros, quando expomos desgraças?”
O trecho da carta de Graciliano Ramos (1892-1953) ao pintor e amigo Candido Portinari (1903-1962) revela o dilema ético do escritor alagoano ao usar a miséria humana como tema de suas obras. A correspondência ocorreu em 1946, quando Graciliano já havia lançado "Vidas secas" (1938) e Portinari concluído a tela "Os retirantes" (1944).
A miséria humana, a correspondência entre os dois artistas, o romance de Graciliano e a tela de Portinari inspiraram a companhia ítalo-brasileira Caravan Maschera a montar "Vidas secas", em cartaz no CCBB-BH. Na montagem, que fica em cartaz até 14 de novembro, a história criada por Graciliano é contada por bonecos inspirados na icônica tela de Portinari.
Embora homônima ao romance, a peça ultrapassa a história do livro e segue rumo próprio no intuito de abordar questões sociais que não se limitam ao Nordeste brasileiro.
“Eu, como diretor, tenho que pensar nessa abrangência para que, em qualquer local onde ela for apresentada, o público possa comparecer com a subjetividade, a abstração e as emoções”, afirma Leonardo Garcia Gonçalves, ator, diretor e cofundador da Caravan Maschera.
"Vidas secas" quase não tem falas. São os bonecos, a trilha sonora e a iluminação que conduzem a história. Com dimensões humanas, eles parecem esculturas feitas de espuma e látex pelas mãos da cofundadora da Caravan Maschera e artista plástica italiana Giorgia Goldoni.
Todos têm um aspecto seco, rude e severo. São áridos como a obra de Graciliano e fantasmagóricos como a de Portinari. Mas "todos eles têm um olhar de esperança", conforme observa Le- onardo. “É esse olhar de esperança que o retirante tem quando sai de sua terra em busca de melhores condições de vida”.
Miséria cíclica
A esperança, no entanto, não é o ponto forte do escritor alagoano e nem do espetáculo da Caravan Maschera. “Graciliano tinha essa questão da miséria cíclica. Nós, de certa forma, deixamos isso na peça, embora eu acredite que, a partir do momento em que abordamos os problemas sociais, nós os condenamos e instigamos o público a ter novas visões a respeito desses problemas, a fim de, quem sabe, propor soluções”, ressalta.
Enquanto concebia o espetáculo, Leonardo e outros integrantes do grupo passaram um tempo em comunidades quilombolas na região do Vale do Ribeira, no Paraná.
"Ficamos algum tempo nessas comunidades conversando com as pessoas e vendo o cotidiano rude delas, a fim de criar um paralelismo entre a realidade atual e o contexto narrado no livro, do nordestino que sai de sua terra por causa da seca", explica.
A peça já foi apresentada em 11 estados brasileiros e tem sua segunda temporada na capital mineira. A companhia circulou também pela Europa, apresentando-se na Itália, Suíça, Eslovênia e, mais recentemente, na França.
Segundo Leonardo, em Paris, imigrantes ucranianos assistiram à peça e viram refletidas no palco suas mazelas em decorrência da guerra na Ucrânia, invadida pela Rússia.
“Sem conhecerem o Brasil e entenderem o contexto do sertão e da seca na região nordestina, eles interpretaram pela realidade deles, que também é de miséria e sofrimento”, diz.
O ator e diretor lembra que “Vidas secas” é um teatro de bonecos, mas não é voltado para o público infantil. “Há cenas densas e complexas, que foram pensadas para um público adulto. Infelizmente, as pessoas, de um modo geral, fazem esta associação: ‘se é teatro de bonecos, é para o público infantil’, mas isso não é verdade.”
Oficina de bonecos
Na semana que vem, os integrantes da Cia. Caravan Maschera ministrarão a oficina Técnicas de Teatro de Animação, de sexta (4/11) a domingo. Eles vão ensinar os participantes a confeccionar bonecos com materiais como jornal, plástico, entre outros utensílios domésticos.
A atividade é gratuita e voltada para pessoas a partir de 16 anos. Interessados devem enviar, até domingo (30/10), e-mail para caravanmaschera@gmail.com, com assunto “Inscrição Oficina de Bonecos CCBB BH”, contendo nome completo, CPF, data de nascimento e telefone para contato. São 20 vagas, que serão preenchidas por ordem de inscrição.
“VIDAS SECAS”
Texto e direção: Leonardo Garcia Gonçalves. Com Leonardo Garcia Gonçalves e Rafael Salgado. De sexta a segunda-feira, às 20h, no Teatro I do CCBB BH (Praça da Liberdade, 450, Funcionários). Ingressos à venda por R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia), na bilheteria do teatro ou pelo site do CCBB. Informações: (31) 3431-9400. Classificação: 16 anos. Todas as sessões contam com intérprete de libras. Até 14/11.