Washington – Os “pés peludos” estão em alta. O lançamento da série "Os anéis de poder" trouxe de volta os debates entusiasmados entre os fãs do escritor J.R.R. Tolkien. Para decidir o que está de acordo com o cânone e o que o contraria, eles têm escavado seus livros tal qual anões em busca de metais preciosos nas entranhas de uma montanha solitária.
Esse resgate, dando vida ao autor no debate público, é uma das melhores coisas da série. “A Terra-Média” se reconstrói enquanto os leitores gastam a ponta dos dedos de tanto esfregá-los nas notas de rodapé de "O senhor dos anéis", que inspiraram a adaptação para a TV.
Era esperado que alguns ficassem atiçados. Tolkien é celebrado por ter criado um mundo complexo e crível. Mexer nos alicerces da Terra-Média pode deixar tudo bambo.
Isso explica por que alguns leitores de longa data chiaram ao ver os roteiristas criarem elementos novos, como a história de que os elfos precisam forjar anéis para sobreviver. Eles reclamaram também ao verem elfos de cabelo curto e mulheres de anões sem barba, contrariando alguns consensos da comunidade.
Essas longas discussões têm um quê de nostalgia para aqueles entre nós que passaram o começo dos anos 2000 na sala de bate papo da Pelennor e no fórum de discussões da Valinor – dois marcos da internet brasileira. Tudo estava em pauta, até mesmo os órgãos genitais dos elfos. Algumas discussões chegaram a sugerir que eram os seus cotovelos.
Não é uma questão de ditar o que aparece ou não nas telas, mas de se envolver com um universo externo ao nosso. A discussão coexiste com o prazer de ver, e talvez seja inclusive necessária a ele.
Tanto os fãs quanto os demais espectadores se deleitaram, nas últimas semanas, com as cenas exuberantes financiadas pelos investimentos recordes da Amazon. A transformação das terras do sul em Mordor, indo do verde ao cinza avermelhado, é um marco televisivo instantâneo. Também impressiona a cena da revelação dos poderes do mago, que tudo indica ser o simpático Gandalf que o público conhece dos filmes.
As discussões dos fãs e os efeitos especiais, no entanto, desviaram a atenção do enredo arrastado e desigual. Quase como se Sauron, o manipulador, fosse tão poderoso que pudesse enganar também os espectadores da produção.
A primeira temporada, que se encerrou no último dia 14, não cumpriu algumas das tarefas básicas de uma boa narrativa, incluindo o desenvolvimento da trama e dos personagens. É um problema mais grave do que se o Balrog foi despertado ou não pelo farfalhar de uma folha de árvore.
A metáfora de Bilbo
Os primeiros e os últimos episódios da série foram excepcionais, mas fizeram de sanduíche alguns capítulos em que nada aconteceu. É como a metáfora que Bilbo usa em "O senhor dos anéis" – se espalhou um pedaço de manteiga em uma fatia grande demais de pão.
Mesmo em seu encerramento épico, a série perdeu valioso tempo de tela com tramas secundárias em vez de contar como é que Celebrimbor construiu a forja com que criou os tais anéis do nome da série.
Dito isso, o saldo segue positivo. A série deu vida a recantos da Terra-Média que Tolkien não tinha descrito em detalhe. Mesmo as origens de Mordor eram vagas, e agora ganharam um interessante contorno, ainda que os fãs mais conservadores possam torcer o nariz.
Haverá tempo para reler a obra de Tolkien e discutir o sexo dos elfos antes de a segunda temporada chegar.
As próximas partes de "Os anéis de poder" devem ser mais dinâmicas do que a primeira. Sauron já retornou à Terra-Média e criou seu reino. Os roteiristas não vão mais precisar alongar a história e criar suspense. Sabemos que um mago, provavelmente Gandalf, também chegou ao continente. Os roteiristas precisariam se esforçar bastante para “esfriar” essa trama.
Três anéis de poder foram forjados na primeira temporada. E ainda faltam 17.