Lançado em 1966 pela autora canadense Margaret Laurence (1926-1987), o romance “A jest of God” acompanha uma professora na casa dos 30 anos em uma pequena cidade de Connecticut e seu despertar sexual e independência. A narrativa logo caiu nas graças da atriz Joanne Woodward. Casada com Paul Newman (1925-2008) havia uma década, ela o convenceu a comprar os direitos para adaptação para o cinema.
“Rachel, Rachel” (1968) marcou a estreia de Newman, então astro de primeira grandeza de Hollywood, na direção. Parceiro na vida e na tela de Woodward (fizeram cerca de 15 filmes juntos), dirigiu ali, pela primeira vez, a mulher. O reconhecimento foi imediato – dois Globos de Ouro (melhor filme e atriz) e quatro indicações ao Oscar.
Em seus 83 anos, Newman participou de cerca de 60 filmes, além de séries para TV. Mas dirigiu somente cinco longas e um telefilme. Quatro deles estão na mostra “Paul Newman diretor”, que começa na próxima quinta-feira (3/11), no Centro Cultural Unimed-BH Minas, dentro da programação do Ciclo de Cinema Supergasbras.
Coautoria
Alem de “Rachel, Rachel”, serão exibidos também “Uma lição para não esquecer” (1971), “O preço da solidão ou A influência dos raios gama no comportamento das margaridas” (1972) e “Meu pai, eterno amigo” (1984). Woodward está em três deles.
“Paul Newman é um cineasta desconhecido dentro da própria cinefilia”, comenta Samuel Marotta, que assina a curadoria da mostra. “(Nos filmes que dirigiu) Ele pôde pôr em prática o que ele próprio experimentou nos anos como ator”, comenta, acrescentando que a presença de Joanne Woodward nos longas vai muito além da atuação. “Há quase uma coautoria.”
“’Rachel, Rachel’ é um filme de costumes que aparenta ser mais careta no início e depois ganha muita força. Pensar na relação de casais, em que o homem é diretor e sua companheira, atriz, gera um ruído muito grande em relação à própria obra. Há uma pulsão muito forte da atriz, que foi o que mais me chamou a atenção”, diz o curador.
Para Marotta, a figura de Newman diretor vai se radicalizando nos títulos seguintes. “’O preço da solidão ou A influência dos raios gama no comportamento das margaridas’ é quase que como se a ideia do roteiro fosse suprimida em detrimento das atuações para a câmera, que é muito pautada pelo que acontece com objetos, espaços. John Cassavetes (1929-1989) disse que foi ‘Raios gama’ que o inspirou a fazer ‘Uma mulher sob influência’ (1974) como experiência do corpo”, afirma.
Diante disso, Marotta também sugere na mostra influências da obra de Newman em outros filmes. Tanto que serão exibidos na programação os títulos “Wanda” (1970), da atriz e diretora Barbara Loden (1932-1980), e “Mar de rosas” (1977), longa de ficção de estreia da cineasta Ana Carolina. A diretora estará presente para uma sessão comentada na primeira exibição do filme na mostra, na quinta-feira.
Os filmes levam para o centro personagens femininas que carregam, de certa forma, o peso do mundo. “Quando assisti a ‘Raios gama’, essa relação com ‘Mar de rosas’ (sobre uma mulher que, acreditando ter assassinado o marido, foge com a filha adolescente em uma viagem delirante) veio naturalmente”, diz Marotta.
A mostra “Paul Newman diretor” é a terceira realizada pelo Ciclo de Cinema Supergasbras. Outras três estão previstas, entre elas uma retrospectiva dos melhores de 2022 (em janeiro) e outra dedicada ao cineasta argentino Martin Rejtman, que virá a Belo Horizonte em março para participar do evento.
PAUL NEWMAN DIRETOR
Desta quinta-feira (3/11) a quarta (9/11) no Centro Cultural Unimed-BH Minas, Rua da Bahia, 2.244, Lourdes. Ingressos: R$ 2. Programação em minastenisclube.com.br/cultura.
Oficina gratuita
A mostra “Paul Newman diretor” também traz uma oficina sobre Paul Newman com o professor e crítico Paulo Santos Lima. Ministrado nos dias 7/11 e 8/11, das 14h às 16h40, o curso vai apresentar o contexto em que ele e a sua geração, chamada rebelde, surgiram, bem como falar sobre o método de atuação com que Newman se destacou. Os alunos assistirão a dois filmes da mostra como atividade suplementar. Os participantes que queiram escrever um texto crítico a partir do curso poderão ter seus trabalhos incluídos na revista/catálogo da mostra (os autores dos dois melhores receberão R$ 500 cada um). Gratuito. Inscrições pelo Sympla.
Série e livro repassam biografia do ator
"Joanne fez nascer uma criatura sexual em mim", disse Paul Newman sobre sua mulher, a atriz Joanne Woodward. "Deixamos uma trilha de libidinagem por todos os lugares. Hotéis, estacionamentos públicos, carros alugados."
Contou ainda que na casa em que moravam em Beverly Hills (EUA), Joanne construiu de surpresa um quartinho secreto, com uma porta disfarçada de estante que saía do quarto do casal, com uma cama comprada em um antiquário e paredes coloridas. "Chamo de 'cabana da foda'", disse Woodward ao marido, orgulhosa do projeto.
"Mesmo que todas as crianças estivessem em casa, a gente se escondia na 'cabana da foda' várias vezes por semana para poder ter nossa intimidade, fazer barulho e ser bem indecente", acrescentou Newman.
Newman e Woodward se conheceram em 1953, quando os dois foram escalados como atores substitutos em uma peça na Broadway chamada "Picnic", no começo da carreira de ambos. Newman era casado com sua primeira mulher, Jackie Witte, desde 1949. Os dois já tinham um filho de 3 anos e ela estava grávida do segundo. Tiveram ainda uma terceira menina em 1954.
Mas a atração mútua entre eles foi impossível de resistir, e Newman e Woodward viveram um caso secreto durante quatro anos. Até que, em 1957, depois de filmarem juntos o longa "O mercador de almas", Newman se divorciou de Witte, deixou a ex com os três filhos pequenos e se casou com Woodward, seu grande amor.
No começo dos anos 1990, Paul Newman, então com 65 anos, uma carreira gloriosa como ator, cheia de prêmios e sucessos de bilheteria, milionário, pai de seis filhos de dois casamentos, um corredor de carros apaixonado e bem-sucedido dono de uma empresa filantrópica multimilionária, resolveu publicar uma autobiografia.
Contratou um dramaturgo e roteirista em quem confiava, Stewart Stern, autor da peça "Juventude transviada", transformada em filme com James Dean em 1955, e pediu que ele conduzisse as entrevistas. O que Stern fez, com preparo e dedicação.
Entrevistou o próprio Newman várias vezes, assim como Joanne Woodward, sua ex-mulher, Jackie Witte, suas cinco filhas - o único filho de Paul Newman, Scott, o mais velho, morreu de overdose em 1978, aos 28 anos - , além de amigos, colegas, ex-diretores. A única regra era que todos fossem 100% verdadeiros nas respostas.
Fitas cassete na fogueira
Alguns anos mais tarde, no entanto, o ator desistiu dessa ideia. Pegou todas as fitas cassete com as gravações e fez uma grande fogueira para destruir tudo. O que ele não sabia era que Stern tinha feito a transcrição das entrevistas, todas elas, e esse material acabou caindo nas mãos de suas filhas alguns anos atrás.
Paul Newman morreu de câncer de pulmão, em 2008, aos 83 anos. Sua mulher, sem que ele soubesse, guardou as transcrições das entrevistas. Joanne Woodward está com 92 anos, mas sofre de Alzheimer há pelo menos duas décadas e já não tem quase mais nenhuma memória.
Uma das filhas do casal, no começo da pandemia, procurou o ator e diretor Ethan Hawke e entregou tudo a ele. Queria que Hawke produzisse um documentário sobre a vida de seus pais, e o calhamaço de papéis sulfite com as entrevistas escritas a máquina seria material suficiente para ele começar a pensar no que fazer.
E o resultado foi, além da deliciosa série documental "The last movie stars", da HBO Max, lançada em julho pelas mãos de Hawke, a autobiografia "The extraordinary life of an ordinary man: A memoir", ou a vida extraordinária de um homem ordinário, que acaba de chegar às livrarias americanas. O livro foi organizado por David Rosenthal, que também foi procurado por duas das filhas de Newman e Woodward, Clea e Melissa, que entregaram a ele as mesmas transcrições.
A série "The last movie stars" foi feita com muitas imagens de arquivo e um toque genial. Como estava todo mundo preso em casa, por causa da pandemia, Hawke convidou seus amigos para reuniões por Zoom, em que alguns deles leram as transcrições das entrevistas, interpretando as pessoas que deram as entrevistas originais.
E seus amigos são gente como George Clooney, que interpreta Newman, Laura Linney, que lê as falas de Joanne Woodward, Alessandro Nivola como Robert Redford, Bobby Cannavale como Elia Kazan, Zoe Kazan como Jackie, a primeira mulher, e Brooks Ashmanskas como Gore Vidal, que foi quem disse que Paul Newman e Joanne Woodward eram as últimas estrelas de cinema, título da série.
No começo do casamento, Woodward era a atriz famosa, considerada um grande talento. Newman era só o ator que ficava com os papéis que James Dean não aceitava ou não podia fazer. Quando Dean morreu, precocemente, aos 24 anos, é que Newman começou a ser considerado a opção dos diretores e produtores.
Ethan Hawke também conversa por Zoom com Martin Scorsese, Billy Crudup, Sam Rockwell, Sally Field e até sua filha Maya Hawke, de 24 anos, do casamento com Uma Thurman. As cinco filhas de Paul Newman também dão entrevistas.
O documentário, que estreou sem nenhum alarde do canal de streaming, é diferente de tudo o que tem sido visto por aí, feito com muita seriedade mas um tom totalmente despretensioso, que faz o público se sentir próximo de todas as pessoas que aparecem na tela, mesmo que sejam as últimas estrelas de cinema em uma noite de Oscar. (Teté Ribeiro, Folhapress)