Bons filmes são, habitualmente, aqueles em que o cineasta descobre um mundo ao mesmo tempo em que o desvela. Ele não o controla, são as coisas que conduzem o filme.
Carolina Markowicz parece fazer o caminho oposto em "Carvão", sua estreia no longa-metragem. O mundo em que se insere é interiorano, caipira, rural. É o de Irene, mulher que leva sua vida difícil ao lado do filho e do marido, que se encarrega ou finge que se encarrega de uma carvoaria. A maior parte do tempo ele bebe ou dorme.
Irene, papel de Maeve Jinkings, tem um problema adicional – seu velho pai vegeta em um leito desde que teve um derrame. Essa vida familiar ingrata e decente se deixa abalar desde que uma enfermeira (ou algo assim) do posto de saúde do lugar sugere a ela que o leito ocupado pelo pai poderia muito bem ser ocupado por um inquilino. Bastaria o homem morrer.
A ideia é a primeira que costura a degeneração familiar que se seguirá. É como se o dinheiro e o mal devessem entrar juntos nessa história. Não é o dinheiro que traz o mal, ele apenas o revela, e talvez seja esse o problema do filme – tudo parece concebido para chegar a certas conclusões inevitáveis.
Mas o dinheiro que chega fácil chega, também, por meandros pouco ortodoxos. Vamos então ao mundo dos bandidos ricos, a uma casa horrivelmente decorada, onde Miguel, papel de César Bordón, é maquiado para fingir que foi baleado na testa.
Em seguida, ele é fotografado numa piscina, junto com outros homens, realmente mortos. Ou seja, a foto deve ser a prova de que ele morreu. O importante é sabermos que os bandidos de verdade vivem em mansões nababescas.
Em seguida, ele é fotografado numa piscina, junto com outros homens, realmente mortos. Ou seja, a foto deve ser a prova de que ele morreu. O importante é sabermos que os bandidos de verdade vivem em mansões nababescas.
Escrúpulos
Pouco depois, é Miguel quem aparece na casa de Irene, pelas mãos da tal enfermeira, para ocupar o leito do velho, que virou carvão, quer dizer, foi jogado num forno da carvoaria. É verdade que Irene tem lá seus escrúpulos, tanto que foi perguntar ao padre local se seria a vontade de Deus ver uma pessoa viver da forma que seu pai vivia. A resposta do padre não importa – ela já sabe muito bem o que fazer.O que se segue parece existir apenas para reforçar a catástrofe no círculo familiar. Tempos depois de abrigar o bandido, os pais serão chamados à escola local pela diretora. Souberam que ele andou comprando drogas. Obviamente, o fez a mando de Miguel.
A vida da família melhora um pouco, graças ao dinheiro do bandido. Até uma moto aparece. Não que Jairo, papel de Rômulo Braga, a utilize para alguma coisa de útil. Ele continua bebendo e dormindo, exceto quando encontra um amigo, ocasião em que sabemos que é gay.
Em poucas palavras, "Carvão" observa um mundo de hipocrisia numa habitação rural, em um pequeno município, onde a vida, longe de idílica, é pautada por certa monotonia, por valores aparentemente sólidos. A destruição moral que acompanhamos existe em função do dinheiro, mas não é determinado por ele.
Como bem lembra o padre na parábola que recita a horas tantas, o mal já estava lá. Mesmo num mundo que parece refratário a ele, estava lá. Pois a parábola trata de uma árvore que, comida por cupins, não os maldiz – eles é que permitem a ela descobrir sua verdadeira natureza.
A parábola parece dirigida diretamente a Irene, mas deixa no ar alguma dúvida. Sendo ela adepta da religião católica, a parábola é dirigida diretamente a ela? Terá ela confessado seu crime original (o parricídio não é pouca coisa)? Ou a parábola foi escolhida ao acaso pelo padre, embora caia como uma luva para demonstrar a frágil natureza de que é feito o humano?
Seja como for, é uma ponta que fica solta no filme, assim como o lado gay da história, que entra ali a fórceps, sem outro motivo aparente que não o de demonstrar que mesmo o mais profundo interior não tem nada da inocência mazzaropiana.
A vida familiar, tão apregoada nos dias que correm como lugar da união, dos valores sadios e tal e coisa, não é senão uma aparência, a julgar por "Carvão".
A vida familiar, tão apregoada nos dias que correm como lugar da união, dos valores sadios e tal e coisa, não é senão uma aparência, a julgar por "Carvão".
Não é a primeira vez que isso acontece. O que distingue "Carvão" é que o filme não chega a essa conclusão. É como se ele partisse de um pressuposto e, vindo daí, encaixasse os acontecimentos de maneira a chegar a essa conclusão. Esse discurso ideológico apaga virtudes que o filme poderia ter, como a presença forte de Maeve Jinkings como Irene.
No geral, "Carvão" permitirá uma comparação saudável com "Meus pequenos amores", de Jean Eustache, que numa só tacada nos mostra a modorra da vida interiorana e a intensa agitação interior que nele existe.
Talvez "Carvão" buscasse isso, mas ali onde Eustache vai como que descobrindo a agitação interior de seus personagens, o filme de Carolina Markowicz se perde ao construir a existência dessa família caipira sobre ideias preconcebidas a respeito da família, do dinheiro e da alma humana.
“CARVÃO”
(Brasil, Argentina, 2022, 108min) Direção: Carolina Markowicz. Com Maeve Jinkings, Cesar Bordon, Jean Costa, Romulo Braga, Camila Mardila, Pedro Wagner. Classificação 18 anos. Em cartaz no UNA Cine Belas Artes (Sala 3, 14h e 19h40) e no Centro Cultural Unimed-BH Minas (Sala 2, 18h30)